Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura – A Expropriação da Terra

Desde as escarpas no norte da cidade pode-se contemplar uma paisagem que já sofreu muitas transformações: pastagens naturais, capoeiras e plantações de eucaliptos no alto das colinas e, nos afloramentos de solos graníticos vermelhos, onde a terra conserva a fertilidade após 200 anos de cultivo, canaviais, laranjais ou pequenas glebas plantadas de milho, arroz ou feijão. No princípio do séc. XVIII, parte destas terras era coberta de campos cerrados* — de solo arenoso e leve, pontilhado de arbustos e árvores — mas quase tudo era floresta.

Próximo a Araras alguns hectares de floresta virgem foram preservados na fazenda que pertenceu a Martinico Prado. É uma visão maravilhosa. A luz da manhã filtra-se desde um dossel de árvores de troncos lisos e folhas delicadas – cabreúvas, perobas, jequitibas – atravessando um emaranhado de cipós e lianas. As figueiras bojudas parecem ameias semidestruidas, impotentes sob o peso das samambaias e trepadeiras. Sentimo-nos gratos para com o primeiro proprietário desta terra por ter poupado um recanto assim, apesar de que ele, talvez, estivesse sentindo menos reverência pelo que restou do que arrogância por haver devastado o restante.

Essas florestas luxuriantes, porém amenas e temperadas, eram convidativas, pois ali o clima não é tropical: a 600 metros acima do mar, a temperatura varia pouco em torno de uma média anual de 20 graus centigrados. Durante quase o ano inteiro, primeiro uma, depois outra espécie de arvore florifera estende um manto cor-de-rosa, púrpura ou amarelo, o que ainda pode ser visto na praça da cidade, onde sobrevive um esplêndido bosque de ipês e paineiras. Outras árvores produziam frutas comestiveis – goiaba, maracujá, jaboticaba, jaca, jatobá — enquanto sob suas ramagens vagavam tapires, pacas e capivaras timidas e lerdas.

A região que viria tornar-se o município de Rio Claro fora, por milhares de anos, o habitat de caçadores nômades cujos artefatos de pedra lascada ainda se espalham pelas margens dos rios. Seus ossos ou os resíduos do que quer que tenham produzido dissolveram-se no solo ácido ou sob as pesadas chuvas de verdo. Aproximadamente há mil anos atrás, eles foram sucedidos pelos tupi-guaranis, semi-sedentédrios, que os portugueses encontraram disseminados ao longo da costa ao chegarem ao Brasil em principios do séc. XVI. Em toda parte os europeus agiram com capacidade em seus primeiros contatos com os primitivos habitantes do novo mundo. No Brasil, estes foram caçados e feitos escravos nas lavouras litorâneas, Após sucessivas incursões, os índios foram dizimados, e destruida sua cultura. A maioria dos remanescentes retiraram-se para o interior do país, enquanto algumas poucas tribos renderam-se e foram instaladas em reservas próximas a áreas colonizadas, sendo catequizadas e gradualmente assimiladas. Apesar de violenta e espoliativa, essa experiéncia da cultura aborígene influenciou profundamente os portugueses. Na qualidade de servos e auxiliares, os tupis ensinaram-nos a dominar a natureza selvagem; como concubinas, as índias deram origem a uma população de mestiços!

Em principios do séc. XVIII os habitantes primitivos se haviam recolhido até um pouco além da região de Rio Claro. Nessa época, a população europeizada da capitania de São Paulo não ultrapassava os 50 mil. Apenas nove núcleos nas bordas do platô, inclusive a capital, tinham sido elevado a categoria de cidade. Essa vasta região de solo fértil e clima temperado, uma fronteira de terras inexploradas, estava aberta à ocupação pioneira. Nas terras novas, os exploradores não apenas sentem-se libertados dos freios da sociedade mas podem, se quiserem, dar-lhe uma nova forma permanente. Somente a revolução representa paralelo, mas, mesmo a revolução não oferece essa sensação de desconhecido, essa estranheza telúrica que da as regiões inexploradas e ao seu tempo um tal poder de atração. Seria de se esperar que, em tais circunstâncias, ainda mais em se tratando de europeus, eles teriam aproveitado a oportunidade de fazer de cada homem um pequeno proprietério, e, por conseguinte, de apagar as distinções e privilégios sociais que os tinham reprimido e asfixiado em sua antiga pátria. Em São Paulo o ambiente era propício a esse tipo de fixação na terra, e no princípio a nova área foi efetivamente uma região de pequenas propriedades.

Entre os aborigenes banidos e os modos de vida organizada nos limites do planalto estendia-se um vasto território, ainda inseguro e não-ocupado, onde havia apenas alguns postos militares dispersos. Para ali se sentiam atraídos os que procuravam refúgio da opressão do dominio colonial. Os que não tinham terra podiam consegui-la. Os jovens aptos conseguiam escapar ao recrutamento, terrivel aflicão devido as guerras intermitentes com a Espanha no Rio da Prata. Os criminosos fugiam a lei, que, de fato, muitas vezes os exilava para aquela região. Já em meados do séc. XVIII um juiz em Itu ainda aplicava a pena de banimento: o condenado recebia ordem de seguir de barco até a cachoeira de Piracicaba e então andar para o Norte. Os escravos fugidos muitas vezes iam para lá – por boas razões o caçador de escravo era chamado de “capitão-do-mato”.

A descoberta de ouro em Mato Grosso, em 1718, acelerou um pouco a ocupação da área de Rio Claro. A fim de atingir aquele lugar extraordinariamente remoto e inacessível, os paulistas em geral seguiam pelo rio Tietê até a bacia do Paraná, navegando em grandes comboios uma vez por ano. Alguns, todavia, para evitar as febres dos pântanos, iam por terra desde a cachoeira de Piracicaba, através de campos de elevações suaves. A cerca de 30 quildmetros ao norte, os vigjantes encontravam uma série de escarpas de 200 metros de altitude, que marcavam o inicio de outro degrau do planalto. Ao norte e oeste estes penhascos são continuos e dificeis de atravessar, mas no meio existe uma passagem mais baixa e erodida, com apenas algumas
elevações que levam nomes como Morro Guarita e Morro Pelado, um caminho foi aberto entre 1719 e 1727, depois abandonado e reaberto entre 1765 e 1775. Seria natural que os condutores de mula escolhessem um local para descansar antes de dar inicio e cansativa subida que os esperava. A parada em Ribeirão Claro provavelmente não passava de um abrigo coberto de folhas a beira de um riacho que cortava a várzea e que é hoje uma praça no bairro chamado Santa Cruz. Ali foi construída a primeira capela da região.As tropas de mulas necessitavam de suprimentos e alguns dos arrieiros transformaram-se em negociantes, Comegou assim um comércio irregular de artigos de primeira necessidade, que progrediu lentamente e atendeu por uma centena de anos a uma população dispersa. Rio Claro passou a ser visto como a boca do sertão, pois logo depois dele começava, no planalto, o que os habitantes consideravam como realmente ermo, o Sertão de Araraquara. Enquanto isso, a vida organizada dos povoados avançava lentamente. Piracicaba, a que se ligava o povoado de Rio Claro, foi elevada a paroquia em 1770. Mogi Mirim, 65 quilómetros a leste, e Campinas, 75 quilómetros a sudeste, foram elevadas à vila em 1751 e 1797. As vilas eram apenas um pouco menos agrestes do que o restante. “Maior parte destas povoações são só no nome… compostas de alguns casaes de Indios, alguns poucos Brancos, todos eles ordinariamente pobrissimos”, escreveu um viajante em meados do séc. XVIII. Os naturalistas franceses d’Alincourt e Saint-Hilaire encontraram pouco mais que casebres de tropeiros em Mogi-Mirim em 1818, enquanto Campinas, mais próspera, tinha apenas casas de taipa. Jundiaí, praticamente uma ruína, conhecera melhores dias no séc. XVII. A floresta virgem ainda crescia entre um povoado e outro.

No começo do séc. XIX, na área de Rio Claro viviam algumas centenas de famílias. O recenseamento de 1822 registrou 1.033 pessoas livres, em 231 domicílios. Quase a metade dos chefes de familia, segundo o censo, tinham nascido fora do povoado, em locais geralmente próximos e um pouco distanciados das regides ainda inexploradas. A maioria tinha vindo de Mogi-Mirim, Bragança e Nazaré, municipios a sudeste, com uma alta proporção de pequenas propriedades em declínio. Alguns eram de Campinas e Itu, ao sul, uns poucos eram oriundos de municipios mais distantes (Sorocaba, Santo Amaro, Jundiai), e alguns provinham da província de Minas Gerais. Apenas quatro tinham vindo de Portugal, e somente sete disseram ter nascido “neste” municipio, o que talvez quisesse designar Piracicaba. Dentro desse perimetro reduzido, a população movia-se incessantemente. Das 12 famílias de lavradores que trabalhavam em sua própria terra, 21 declararam ter chegado naquele ano. Menos de 10 por cento das famílias livres, presentes em 1822, apareceram no recenseamento seguinte, 13 anos depois, quando um dos recenseadores registrou minuciosamente o lugar de nascimento de todos os membros da família. Na sua seção, 16 entre 35 chefes de família tinham casado com uma mulher de cidade diferente; 30 famílias tiveram filhos nascidos em pelo menos uma outra cidade que não Rio Claro, e 13, nascidos em pelo menos duas outras. Para 83 famílias com filhos, o número médio de anos de residência foi 5,2.

Invariavelmente as famílias eram nucleares, marido, mulher – ou um consorte sobrevivente — e filhos. Esta estrutura prevalecia em São Paulo pelo menos desde o primeiro recenseamento em meados do séc. XVIII, Das 16 famílias cuja cabeça era uma mulher, em geral viúva, a metade vivia de esmolas. Em alguns casos os homens não se consideravam casados, e o recenseador escreveu agregada – dependente, em vez de esposa – para se referir companheira, mesmo quando havia filhos. Algumas famílias tinham outros tipos de agregados, ou muito jovens ou idosos. Tratavam-se, provavelmente, de parentes. As familias nucleares não se isolavam socialmente pois havia, ao que parece, uma forte tendência para a fixação em áreas onde já houvesse parentes. Isto se comprova facilmente pela recorrência de nomes de família nas mesmas seções, ou entre os que declaram a mesma procedência. Das 21 famílias de Mogi-Mirim, em 1822, apenas 4 tinham sobrenomes diferentes de todos os outros.

A POPULAÇÃO DE RIO CLARO, CENSO DE 1822

A população livre aparece nos registros como branca, em geral – 85 por cento em 1822, mas apenas 66 por cento em 1835. Uns poucos não-brancos são definidos como pardos. Essas distinções refletem, sem dúvida, critérios muito pouco rígidos, bem como delicadeza de tratamento social. Provavelmente muitos pardos foram classificados como brancos no primeiro censo, e talvez também no segundo. Saint-Hilaire, o botânico francês, observou em suas viagens por São Paulo que a população branca era, de fato, mestiça, categoria que nunca aparece nos recenseamentos. Alguns dos pardos poderiam talvez ser classificados como pretos, mas o termo era considerado depreciativo para ser aplicado a um homem livre. O único homem livre a ser indicado como preto no censo de 1822 e os sete de 1835 possivelmente eram conhecidos no lugar como africanos alforriados. Os recenseadores de 1822 não registraram nenhum casamento entre brancos e mulatos, outra imprecisão social, ou talvez fosse mais fácil simplesmente atribuir a mesma designação racial a todos os membros de uma família. Em 1835, todavia, em cerca da metade das seções os recenseadores deram-se o trabalho de estabelecer distinções.

Encontraram, assim, em 255 casais, 22 cujos membros foram classificados diferentemente: 12 brancos com pardas, oito pardos com brancas, e dois negros com pardas. Havia 91 outras famílias nessas seções em que ambos os consortes foram designados como mulatos, portanto quase 20 por cento desse grupo racial casaram-se com pessoas de raça branca. Os filhos, em duas das famílias pardo-branca, foram classificados como brancos, e não pardos. Talvez fossem frutos de casamentos anteriores, ou possivelmente eram suficientemente claros para entrarem em outra categoria. Aos olhos dos outros moradores das vilas, com maior ascendência social, essas famílias livres eram simplesmente consideradas como constituidas de”cablocos”, fosse qual fosse a raça, termo este que soava vagamente pejorativo, pois trazia implicitos os conceitos de rude e de mestiço, sem a conotação favorável de termos como “exploradores” ou “desbravadores”.

AGRICULTURA PREDATÓRIA E O HÁBITO DE ATEAR FOGO

Uma das razões porque os colonizadores de Rio Claro eram tão errantes estava na agricultura predadora que praticavam. Eles abriam claros temporários na floresta por meio do fogo. Perto do final do inverno, que era a estação seca, cortavam a machado e foice as lianas e o sub-bosque, e os deixavam secar por algumas semanas. No dia em que o vento era propicio, punham fogo à mata, que ardia intensamente; a fumaça era visível a quilómetros de distância. A clareira resultante, com uma extensão de dois a três hectares, não consistia num campo limpo, pois nela restavam os restos de troncos enegrecidos e de raizes desenterradas – mas era fertilissima. O lavrador fazia alguns furos no solo com um pedaço de pau, punha umas poucas sementes em cada cova e aplicava muito pouco trato cultural dai em diante, exceto uma ou duas capinas e o espagamento das mudinhas. Por uns cinco ou seis anos repetia-se a queimada antes da plantação, até que o lugar era abandonado e o mato tornava a crescer. Esse tipo de lavrador tinha poucos investimentos fixos a perder: um casebre construido precariamente de taipa, coberto de folhas de palmeira, de chão batido, mais uma tulha de milho e um monjolo.

A principal cultura era o milho que, segundo cálculos de Luis Lisanti, contribuia com 80 ou 90 por cento das calorias dos colonizadores. Os censos revelam que a maioria das familias o cultivavam. Em 1822, cada uma produzia em média 83 alqueires (3 mil litros). O milho era triturado e consumido sob a forma de pão ou angu. Outros alimentos produzidos eram o feijão, plantado por dois terços das famílias, e arroz, por um sexto (Tab. 1.1). Ambos exigiam solo bem limpo e cuidados adicionais, motivo pelo qual apenas cerca de 12 alqueires de arroz eram cultivados em média por familia, e somente nove de feijão (Tab. 1.2).

Havia outras culturas de menor importancia. A mandioca, importante porque podia ser colhida praticamente o ano inteiro, e por exigir pouco do solo, não consta do recenseamento, mas provavelmente era plantada por algumas famílias, assim como outros tubérculos e frutos — abóbora, batata-doce e inhame. A proteina animal era fornecida em grande parte pelos peixes e caça, porém muitas familias também criavam porcos, que podiam ser deixados soltos no mato, semiselvagens. Ninguém tinha galinhas, pois não podiam defender-se das cobras. Algumas famílias plantavam algodão e teciam. Havia uma certa troca de sabão, velas e fumo. Na floresta podia-se buscar frutas, ervas medicinais e temperos, bem como material para construção. Segundo o recenseamento, poucos dos cidadãos livres de Rio Claro faziam parte do processo econômico mais amplo da província. Dezesseis famílias tinham vendido porcos, sendo 95 no próprio local e 97 em Itu, São Paulo (a capital da província), Campinas e Porto Feliz.

Nesta última vila, três lavradores de Rio Claro venderam um total de 140 arrobas (2.050 quilos) de fumo, possivelmente para serem enviados pelo Tietê até outros lugares mais ao interior, o comeércio de porcos era particularmente adequado para a região, pois eles podiam ser conduzidos a pé até o mercado. Dos que realizaram vendas no mercado em 1822, apenas um recebeu mais de 100 mil-réis, mantendo-se a media em torno dos 32 mil-réis (um mil-réis valia então 1,25 dólares; um dia de trabalho na lavoura valia 0,64 mil-réis; ver Tab. 1.3). Já em 1835, a participação no mercado era bem maior. O recenseamento mais recente nada diz, infelizmente, sobre vendas ou preços, mas é possível inferir a prática da cultura comercial do aumento na produção de milho e no número de famílias que criavam porcos — 23 famílias, 594 animais – assim como do aparecimento de vacas – 11 famílias, 115 cabeças. Havia também cabras, mamona e amendoim. Em parte esta maior variedade se tornara possivel pela mais intensiva derrubada e queimada da floresta, mas decorria também do surgimento de um núcleo de vila no próprio Rio Claro.

1835- A redução da pequena propriedade

Todavia, ainda que os colonizadores se tornassem mais numerosos e as terras cultivadas fossem mais extensas e mais ligadas agora a uma economia de mercado, eles não conseguiam manter a posse das mesmas. Estranhos vindos de outras regides mais distantes adquiriram titulo as mesmas, expulsaram muitos dos antigos donos e submeteram o restante a uma espécie de regime de arrendamento. Mesmo no primeiro recenseamento, de 1822, não se pode perceber a maneira como viviam os colonizadores inteiramente independentes; por essa data já havia 40 propriedades agrícolas que utilizavam trabalhadores escravos. Em 1835 os pequenos proprietários tinham sido reduzidos a um terço da população. A razão desta mudança era que os excedentes financeiros gerados pela economia colonial, acumulados principalmente pelos fazendeiros do litoral e por comerciantes, burocratas ou profissionais liberais das vilas, eram reinvestidos por eles em novas terras.

A aquisição de terra, mesmo que ultrapassasse os limites da exploração potencial de culturas para exportação, baseava-se ainda assim em considerações de ordem econômica. Era possivel especular que a melhoria nos transportes ou o aumento nos preços no mercado internacional pudessem ampliar o perimetro da lavoura lucrativa. Terras virgens eram tão necessárias para os que cultivavam o solo predadoramente, quanto para os que plantavam para exportar, pois uns e outros dependiam da maior fertilidade das terras recém-limpas a fim de manter a produção. Por outro lado, lotes de reserva poderiam ser subdivididos lucrativamente ou utilizados como garantia para empréstimos.

A propriedade de terras, além disso, no contexto da organizagio politica colonial, representava um investimento mais seguro do que qualquer outro. Não eram taxadas, não eram atingidas pela inflação, não constituiam um bem tão ostentatério ou liquido quanto produtos comercializaveis, animais ou dinheiro; portanto, o governador não podia confisca-la quando precisasse desesperadamente de recursos, ou se pusesse invejoso. Ao contrário, ele considerava os proprietários de terras como particularmente merecedores de contratos governamentais, concessões e altos cargos, através dos quais era possível acumular novas riquezas.

Fora de qualquer dúvida, a posse de vastos tratos de terra dava prestígio, daí porque seu proprietário considerava de seu direito exercer comando e auferir deferência. Tais sentimentos podem ser caracterizados como senhoriais, mas eram engendrados por ações que se destinavam a aumentar o acesso a riquezas, e, em decorrência, a alcançar lucros monopolísticos num mercado ativo e capitalista.

As sesmarias e o primeiro “estelionato”

Era proveitoso para os comerciantes e para outros que pensavam em aplicar grande investimentos na terra, que se mantivesse o sistema de sesmarias, ou doações de terras da coroa. As sesmarias, concedidas pelo vice-rei ou o governador, eram os únicos titulos de posse de terra reconhecidos pelos tribunais, até a Lei da Terra em 1850. Em geral, tinham uma légua quadrada (44 quilômetros quadrados), e custavam, em despesas de expediente, 300 a 400 mil-réis, importância que não estava muito além da capacidade de um colonizador livre, se ele já estivesse empenhado em algum tipo de cultura econômica. Era quase impossivel conseguir crédito, mas ele poderia reunir os recursos dos parentes, se tivesse a sorte de pertencer a uma grande familia cujos membros fossem todos prósperos. Na verdade, uma das sesmarias de Rio Claro parece ter sido estabelecida por uma associação desse tipo, a da família dos Pereira, que se dedicavam a criação de gado e de cavalos. Era mais comum, todavia, que o governador ou o vice-rei ou- tornasse esse imenso favor sob forma de terras gratuitas, a pessoas ricas e politicamente influentes nas vilas.

Aliás, a primeira doação feita na área foi obtida fraudulentamente. José Ignácio Ribeiro Ferreira, impedido legalmente de adquirir sua própria sesmaria por ser secretario do governador, usou testas-de-ferro para conseguir cinco delas – uma das quais em Rio Claro – num total de 566 quilômetros quadrados, duas outras foram concedidas antes de 1800, ao que parece a especuladores que jamais deram inicio ao cultivo a que obrigavam as doaçõess, que por isso acabaram caducando. O restante das dez sesmarias em Rio Claro foram doadas nos últimos anos antes que a Independência pusesse fim ao sistema sesmarial, em 1822, com excessão da sesmaria concedida aos Pereira, todas as outras o foram a pessoas muito ricas, com altas posições na milícia ou no serviço público, e que já possuiam fazendas em outros lugares, cinco dessas sesmarias foram outorgadas a grupos de parentes, outra a um funcionério português aposentado, Francisco da Costa Alves, que já possuia uma fazenda em Jundiai. As outras três foram doadas a grupos que já viviam nas terras na época da legalização, mas nenhum deles era constítuido de posseiros comuns, pois tinham trazido escravos e rendeiros. Os primeiros moradores ficaram relegados a uma posição acentuadamente marginal, lotes legalizados de apenas 170 hectares, em 1818, correspondiam tão-somente a 2 por cento de todas as propriedades registradas, ainda que pertencessem a metade dos proprietários da região de Rio Claro.

Parece estranho que estas terras de São Paulo, tão temperadas e apropriadas as técnicas agricolas européias, tivessem sido tdo abruptamente fechadas ao aproveitamento sob a forma de pequenas propriedades. A sesmaria latifundiaria fora, talvez, um incentivo necessário para atrair protugueses nos dois primeiros séculos da colônia, mas em fins do séc. XVIII não mais se justificava, seria de se esperar que a burocracia real, interessada no maior: desenvolvimenço da região, ainda que restringido pelo sistema mercantilista, tivesse insistido na predominância da pequena propriedade e do trabalho livre. Já se tivera acesso intelectual a esse conceito. Em 1810, o procurador-geral de São Paulo recomendara vivamente ao rei não apenas a abolição gradual da escravidão como também a doação de propriedades tanto a imigrantes como a libertos, e ainda o estabelecimento de um fundo para a concessdo de crédito a fim de que os minifundiarios pudessem competir com as grandes lavouras.

Seu objetivo era aumentar os recursos do estado, que ‘‘cresceria sempre junto com a agricultura, a colonização e a indústria do povo. Seria, pois, uma lei muito sabia”.

Além do mais, a coroa não estava inteiramente desprovida de recursos para forçar os habitantes da colônia a seguir as diretrizes que parecessem mais convenientes para a metropole. No passado, fizera cumprir um numero consideravel de reformas sociais draconianas com o objetivo de aumentar a produção ou melhorar sua posição militar. São Paulo, ademais, comegava a receber a atenção do governo do vice-rei, após um longo periodo de abandono e despovoamento por parte dos recrutadores militares. Conforme diminuiam as rendas provenientes da mineração, o potencial da agricultura parecia mais promissor. O governo construíra, por conseguinte, entre 1785 e 1795, uma estrada com grandes melhoramentos desde o porto de Santos até o planalto, reduzindo, assim, significativamente os custos do transporte.

Os administradores reais, infelizmente, eram incapazes de considerar seriamente uma reforma que não apenas traria o desejado incremento nas rendas mas também o que lhes parecia uma revolução social. A única organização que eram capazes de conceber para a imensa colônia era a de uma sociedade exatamente tão aristocrática quanto a da metrópole. Ao longo do período colonial, portanto, doações de terra representaram o privilégio mais importante que o rei podia outorgar. “A condição social do concessionário era, em última instância, o fator decisivo no regime das doações”.

Não se quer, com isso, negar o desejo de lucro por parte da coroa. Os administradores não haveriam de querer conceder direitos qe propriedade a uma classe social que consideravam irresponsável e improdutiva. Os dois vicios dos primeiros colonizadores, no dizer do governador de 1766, eram “a soberba e a preguiça”. Os burocratas supunham que, deixados na posse tranquila das suas terras, o pequeno proprietario jamais se dedicaria a agricultura econômica. Virando ao reverso a imagem de uma sociedade que para os pequenos proprietarios da América Inglesa constituia uma ideologia, os elaboradores de politica no Brasil acreditavam que apenas dos ricos e bem-nascidos era possível esperar a demonstração de qualidades empresariais, pois os outros “não tem idéia de propriedade nem desejos de distinções, e vaidades sociais, que são as molas poderosas, que põem em atividade o homem civilizado”. Os caboclos, queixava-se outro, são “quasi de uma nova natureza fora de comum quero dizer despidos daquela bem regulada ambição que faz florescer os Estados e impelle os homens ao trabalho e às indústrias”.

Os exploradores, lamentavam-se eles, não eram corajosos ou enérgicos. A natureza era muito generosa em São Paulo; não se sentia o aguilhão da fome. Ainda que fossem “fortes para todo o gênero de trabalho”, só trabalhavam para se sustentar e às famílias. Os governadores reais, que extorquiam desesperadamente os colonizadores dos excedentes para alimentar as tropas, concordavam com os funcionários civis e os grandes proprietários. Um deles escreveu em 1788 que não havia produção pois “que deixaram de produzir-se nesta capitania pela ocioza liberdade em que vive a maior parte dos seus habitantes, postos em vadiagem e reduzidos a huma total pobreza, com repugnância a todo trabalho”. O desprezo e a ira do aristocrata pelas classes inferiores que não podiam controlar é manifesto na descrição que outro funcionário faz do mutirão para a limpeza do mato: depois de “comer muito e beber melhor, pegam os machados e nas foices, mais animados do espírito da caninha do que do amor do trabalho….. Tão vadios [ são] que, para haverem de trabalhar dous ou três mezes no anno, é precizo serem conduzidos como para a folia”. Era essencial, portanto, para que se recriasse a sociedade repressiva e autoritária da metrópole e se retirasse o máximo de rendimento para a coroa, que esses “aventureiros, exilados, homisiados, misántropos inimigos do convivio social”, como os descreveu um recente apologista dos latifundiários, fossem expulsos, para que “o verdadeiro povoamento” pudesse ter inicio. Os novos donatários começaram imediatamente a especular com as suas terras. Com exceção dos Pereira, apenas a metade deles jamais fixou residência em Rio Claro. Todos começaram a vender partes de suas quotas, sempre em extensões bastante grandes, para outras partes que estabeleciam lavouras ou revendiam-nas para outros. Em 1835, sete dos 12 engenhos de açúcar em operação tinham sido construídos por pessoas que haviam comprado partes de sesmarias. Cinco podem ser identificadas como membros de famílias que já cultivavam cana na região de Campinas e Itu, inclusive Joaquim de Andrade, que casara com uma moça da família de um dos sesmeiros. Os outros dois eram um padre e um oficial do exército, Estevão Cardoso de Negreiros que, possivelmente, aproveitara-se de sua vantajosa posição de comandante do forte no porto de Santos para acumular seu capital inicial.”

Ainda que estejam muito dispersos os registros das transferências de terra nos períodos mais remotos – além de muitos dos contratos de venda terem sido feitos verbalmente – as referências feitas em contratos posteriores às vendas iniciais deixam entrever uma extraordinária mudança de proprietários. Em 1855, quando houve o primeiro registro geral de terras, muitas declarações mostram três ou mais donos sucedendo o sesmeiro original, de mais ou menos 30 anos antes. Muitos dos proprietários anteriores nunca haviam morado em Rio Claro, eram especuladores que visavam ao lucro decorrente de novas subdivisões. Muitos dos proprietários, na paróquia de Rio Claro, que indicaram a data de aquisição de suas terras, haviam-nas recebido menos de seis meses atrás. A rapidez das transferências por compra excedia a das heranças. No mesmo registro de 1855, apenas 20 por cento dos que – declararam a procedência de seus titulos indicaram herança ou doação. Ainda que algumas das declarações de compra ou troca fossem,
na verdade, ajustes entre co-herdeiros, aparentemente, havia mais compras do que doações.

As declarações dos maiores proprietários revelam numerosas transações entre vizinhos – constantes trocas de demarcações entre terrenos. Como exemplo extremo, a lavoura de Nicolau Vergueiro era formada por doze tratos diferentes, num total de mais de 100 quilômetros quadrados. A terra em Rio Claro, evidentemente, fazia parte de uma economia de mercado ativa e fluida. A concessão das sesmarias não anulava inteiramente os direitos dos primitivos posseiros, os titulos de cerca de um terço das terras em Rio Claro derivam-se unicamente de posse, isto é, ocupação original.

O motivo é que muitas das terras com extensão de sesmaria foram ocupadas tarde demais para serem legalizadas mediante uma doação subsequente. O governo do Brasil independente mostrou-se incapaz de formular uma lei da terra em substituição ao regime de doações reais. Os reivindicantes de Rio Claro, embargados, tiveram de recorrer a formas improvisadas de reconhecimento, combinavam seus interesses com outros, vendendo lotes a terceiros que, então, deveriam sustentar a alienação original. O imposto pago por essas transações era apresentado como prova de aprovação oficial. Em Rio Claro, um dos posseiros mais importantes, Manuel Paes de Arruda, fortaleceu sua posição doando parte de sua posse para a construção da sede do municipio.

A Câmara Municipal de Piracicaba declarava, em 1835, em relatório ao presidente da provincia que já não havia terras públicas na região. Na verdade, elas tinham sido todas usurpadas. Também algumas das pretenções dos primitivos ocupantes puderam manter-se de pé, apesar das sesmarias. Certos tratos de terras pobres nunca foram cobiçados pelos de fora, e portanto nunca foram sujeitos a uma alienação legal. Assim a paróquia de Itaqueri, que mais tarde mudou o nome para Itirapina, permaneceu uma região de lavouras de subsistência isolada, cujos títulos baseavam-se na posse.

Algumas das clareiras abertas pelos primeiros ocupantes e que se encontravam nos limites entre sesmarias foram deixadas em paz, a fim de não provocar disputas entre os sesmeiros. As últimas sesmarias concedidas em Rio Claro reconheciam, de certa maneira, os direitos dos posseiros: o donatário era impedido legalmente de violar os direitos dos que já vivessem dentro dos limites da sesmaria. Pelo menos um donatário desistiu de uma área em Rio Claro por ter encontrado “demasiados posseiros”, não em decorrência dos direitos a que eles pudessem pretender, mas porque, nesse caso, teria sido necessário recorrer a forças de que ele não dispunha.

Apesar de que os ocupantes originais tivessem conseguido um certo direito às terras que cultivavam, a maioria foi sumariamente expulsa pelos donatários. Deixá-los permanecer, mesmo que o novo dono não tivesse intenção de utilizar a terra imediatamente, teria colocado em questão o seu próprio direito, além de oferecer mau exemplo para os rendeiros que ele pudesse ter instalado na propriedade. Os ricos em geral não recorriam aos tribunais para resolver essas questões, o que dava trabalho e trazia implícita uma desagradável igualdade de direitos. Era mais fácil armar um capataz e alguns rendeiros e mandá-los atrás do morador, que depois era designado como “intruso”.

Ameaças e danos às plantações em geral precediam uma violência maior, de maneira que a expulsão quase sempre se processava sem derramamento de sangue. Ainda que a simples retirada não fosse muito difícil, muitos donatários ou seus sucessores compravam pequenos lotes, talvez na esperança de fixar com maior segurança os limites da sesmaria. É possível, porém, que essas vendas fossem forçadas, o que representaria então apenas uma variante do padrão usual de expulsão, provavelmente a agricultura pouco racional que se praticava nas novas regiões se devesse em parte à quase impossibilidade de conseguir a posse legal das terras.

Talvez os métodos predadores também limitassem a profundidade do conflito gerado pela remoção dos caboclos, pois o que estava em jogo era uma clareira que, de qualquer maneira, teria de ser abandonada dentro de algum tempo. Era raro um ocupante primitivo escolher a alternativa de pedir para ficar na sesmaria como rendeiro. Sempre havia mais um trecho de floresta, de graça. O fluxo da população, répido como era, processava-se sempre mais para o interior despovoado. No recenseamento de 1835, apenas uma fami- lia em todo o Rio Claro declarou ter vindo do Sertio de Araraquara, enquanto os novos rendeiros tendiam sempre mais a serem nativos de municipios de solos pobres que não se prestavam para a agricultura econômica.

De Jundiai, Bragança, Atibaia, Mogi-Mirim e da região ao leste de Minas Gerais vieram 57 por cento dos chefes de familia em 1822, e 74 por cento em 1835. Os modestos pagamentos em espécie cobrados pelos novos donos das lavouras deixavam-nos com maiores recursos de subsistência do que teriam conseguido obter eles mesmos naqueles municipios, mesmo se tivessem sido pequenos proprietarios.

Os donatários das sesmarias, portanto, tomaram conta dos melhores solos em Rio Claro sem necessidade de recorrer a muita violência. Mesmo quando se retiravam os caboclos prestavam um serviço ao regime das grandes lavouras. Ao se deixarem empurrar sempre mais no sentido das terras virgens que ficavam entre os aborígenes e as fazendas, os caboclos desempenhavam a função de inestimável valor – ainda que não reconhecida — de manter os índios a distância. As lavouras de Rio Claro não eram atacadas por eles, ainda que a isso estivessem expostas, e não fossem protegidas pela milicia. Somente os caboclos sofriam represálias pela tomada das terras dos indígenas. Além disso, os grandes proprietários ficavam a salvo da hostilidade dos caboclos, pois estes descarregavam suas frustrações em cima do mais acessivel de seus inimigos, e desprezavam os índios tanto quanto os fazendeiros os desprezavam.

A alienação das terras da coroa e a introdução da escravatura não eliminou de vez a pequena propriedade. Os recenseamentos de 1822 e 1835, e o registro de terras de 1855-57, mostram apenas um pequeno declinio na proporção das famílias rurais que trabalharam, suas próprias terras (Tab. 1.4). Cerca de 54 por cento dessas famílias rurais eram livres, em 1822; a proporção cairia para 48 por cento, 35 anos mais tarde. Todavia, decrescera a area coberta por essas propriedades em relação ao total. Havia, entre as famílias com terras, 149 que eram, de acordo com o paroco, “miseráveis”, pobres demais para pagar os dois ou três mil-réis que custava o registro das mesmas. Esses minifundios não podiam prover rendas, nem mesmo subsisténcia.

Na outra extremidade da escala econômica, as propriedades escravagistas, cujo número não dobrara durante o período, contavam, no total, com um número de escravos três vezes maior. Pelo menos no inicio do regime das grandes lavouras, os pequenos proprietários de Rio Claro aparentemente dispunham de um crescente mercado para seus excedentes. A produção de milho por familia livre aumentou de 274 mil para 909 mil litros, entre 1822 e 1835, o que representa um aumento per capita superior a 70 por cento (Tab. 1.5). É provável que esse excedente fosse usado na engorda de porcos, na alimentação dos moradores cada vez mais numerosos nas vilas, e para compensar o déficit nas fazendas. Talvez se destinassem tambem à maior população flutuante dos guias de mulas, que não eram registrados como habitantes mas que dependiam, ainda assim, do município, para uma parte de seus víveres.

O voto de cabresto

O surgimento do minifúndio em 1857 representa um forte indício de que muitos dos pequenos proprietários estivessem sendo marginalizados, passando de fornecedores de produtos a mão-de-obra em regime de tempo parcial. No sistema das grandes lavouras, eles eram dependentes ainda noutro sentido importante. Os fazendeiros ocupavam todos os postos políticos, inclusive o de Juiz de paz, delegado de policia, inspetor escolar e comandante da milícia. Era impossível para o pequeno proprietario sobreviver sem o favor do fazendeiro Este, em troca, fazia apenas uma exigência: o voto.

Pela Constituição de 1824 apenas os que tinham propriedades ou negocios poderiam votar, estando excluídos os empregados. O pequeno proprietário constituía, portanto, o único eleitorado do império, e a sua mobilização era a principal fraude exercida no regime. Essa forma de relação dava ao pequeno proprietário o direito de ser tratado de forma cortês e respeitosa por parte do fazendeiro – que o chamava de vizinho, sentava-se a sua mesa e se abstinha de abusar das mulheres de sua familia. Por outro lado, o pequeno proprietário tinha de servir na milicia, o que o obrigava a montar guarda em dia de eleição, perseguir escravos fugidos e, talvez, seus proprios companheiros, em outras ocasiões. Portanto, tinha de assumir as brigas dos poderosos e exibir em público sua fidelidade pessoal ou partidaria, como se fosse marcado a ferro.

Ao mesmo tempo, os fazendeiros recebiam em suas propriedades certo número de trabalhadores destituidos de terras. Os que adquiriam certa estabilidade chamavam-se agregados, como os parentes dependentes das familias de pequenos proprietarios, mas, neste caso, com a caracteristica de serem ‘‘servidores”. Em 1835, das familias que possuiam escravos, 16 tinham um total de 45 agregados. Havia ainda uma população flutuante de trabalhadores de posição precária — os camaradas — contratados para determinada tarefa ou para ajudar na colheita. Nenhum desses grupos era empregado para trabalho regular na plantação, sendo utilizados somente para certas tarefas especiais como limpar mato, construir estradas ou guiar carroças. Os fazendeiros não podiam exigir mais deles, não apenas porque eles podiam facilmente abandonar a lavoura, mas porque tinham necessidade de conservar-lhes a lealdade. Os camaradas eram obviamente um elemento inconstante no seio da população. Sua pobreza era a mais evidente, estavam sujeitos à prisdo por vadiagem quando largavam a fazenda, eram desprovidos da proteção de que gozavam o pequeno proprietario e o agregado, mas em compensagdo eram livres para fazer o que quisessem. Consideravam, acertadamente, que se tratava de exploração o objetivo dos fazendeiros de submeté-los ao trabalho sem descanso na lavoura.

Por sua vez, os fazendeiros exprobravam-lhes a preguiça e a imprevidência, mas precisavam deles, pois eram corajosos, resistentes e resignados a permanecer sem terras. À contradição permanecia insolúvel dentro da embrionária economia de mercado do Oeste Paulista. Um salário suficientemente alto para tentar os camaradas a um trabalho permanente acabaria possibilitando-lhes a compra de uma propriedade dentro de um período razoável de tempo. A aceitar tal ocorrência, os fazendeiros preferiam cogitar seguidamente sobre o emprego da forga contra eles, assim como contra os escravos.

176 HOMÍCIDIOS POR MIL HABITANTES

Aflorava, de vez em quando, a sugestão de que a população rural sem terra fosse arregimentada numa ‘“milicia agricola”, juntamente com os libertos. Ainda que sistemas de trabalho forçado tivessem sido aplicados em outras partes do Novo Mundo depois que a escravidão se tornara inviável, a prática deste regime a ela assemelhado ter-se-ia revelado impraticável e teria prejudicado, além do mais, a transição para o trabalho assalariado baseado na imigração européia, o sistema social das grandes lavouras era de extrema violência.

A expulsão dos posseiros, a defesa dos limites imprecisos das propriedades, a supervisão da força de trabalho escravizada, o controle social dos que não tinham terras, tudo exigia o emprego da força. Agregados eram recrutados como capangas, uma politica particular que guardava as divisas e executava qualquer ato violento que o fazendeiro lhes ordenasse, inclusive assassinatos. As vezes se encontrava quem gostasse desse tipo de ocupação tiranica, mas a maioria dos rendeiros temia desempenhar essas atividades, que os expunham aos perigos da vingança pessoal. Os camaradas, inseguros e sem raizes, frequentemente envolviam-se em turbulências a esmo, em geral voltadas contra seus assemelhados.

A taxa de crimes de morte no interior de São Paulo em 1835 foi de 32 por mil, e no distrito que incluia Rio Claro alcançou, naquele ano, o número espantoso de 176 por mil, Sem divida, aquela região de fronteira sofria os mais altos indices de violência. Parece que Rio Claro foi cena de crimes politicos em 1842 e 1846, durante uma crise que abalou a província, a um tempo em que a oligarquia local ainda não estava firmemente assentada, em 1830, Rio Claro tinha 2 mil habitantes, construira-se uma igreja e o lugar fora elevado a paróquia, designação que tinha implicações não apenas religiosas como também de administração civil.

Sociedade do Bem Comum e o poder dos fazendeiros

Os fazendeiros organizaram uma Sociedade de Bem Comum, cujo objetivo era atuar como um governo local, enquanto se enviava à provincia uma petição para que incorporasse a área formalmente, a Sociedade decidiu onde seria o centro da vila, um ato politico significativo, pois determinaria o custo do transporte para cada fazendeiro. Como o centro constituia um patrimônio, isto é, terra doada, a Sociedade arrogou-se o direito de dividi-lo em lotes e vendê-los. Os fundos foram usa-dos para objetivos da administração local e para a construção da igreja. Desde o começo, portanto, a politica de Rio Claro esteve nas mãos dos fazendeiros.

Comércio e o desmembramento de Piracicaba

Em 1835, o municipio contava com 60 domicilios que se ocupavam de atividades não-agricolas no centro da vila, dos quais 23 dedicavam-se ao comércio, 19 a construção – principalmente carpintaria — 15 a oficios diversos, inclusive, surpreepdentemente, a joalheria. Outros 35 declararam ganhar a vida como jornaleiros, pagos por dia, tralhando possivelmente na agricultura. Um secretário do Juiz da Paz que funcionava como tabelião, e o vigário eram membros de lma espécie de classe média ex officio. Além deles, apenas cinco declararam renda superior a 200 mil-réis, sendo o mais rico de todos um dos comerciantes, que vendia tecidos e ganhara 600 mil-réis.

Em 1842, Rio Claro desmembrou-se do municipio de Piracicba. Administrativamente, a unidade de governo local no Brasil é o municipio, cuja sede não fica separada, politicamente. Ao contrário, toda a área do município, inclusive a sede, e quaisquer outras povoações que se encontrem dentro de seus limites são governadas por uma única câmara. O município de Rio Claro incluía algumas paróquias. Brotas e Descalvado logo se tornaram municípios independentes, em 1859 e 1865, respectivamente, enquanto Itaqueri permaneceu integrada a Rio Claro. Em 1845, o municipio passou de vila para cidade, o que lhe trouxe um pouco mais de autonomia em relação a provincia. Rio Claro e Itaqueri somavam cerca 1.600 quilometros quadrados.

Nesta parte do Oeste Paulista, a extinção da população indígena e sua substituição por colonizadores europeizados, os caboclos, ocorreu gradualmente ao longo do séc. XVIII. Desde o começo a irrupção dos posseiros mestiços-mulatos ligava-se a economia da costa, pois esses marginais reuniam-se nos pontos ao longp da estrada que levava as minas em Mato Grosso. Os ocupantes originais tinham le abrir pequenas clareiras temporarias na mata virgem, mas conseguiam manter facilmente um regime de subsistência, e até praticar certo montante de comércio com as cidades próximas ao litoral.

Por volta de 1820, muitos dos moradores de Rio Claro foram subitamente expulsos por algumas poucas pessoas com suficiente dinheiro e influência política para conseguir títulos de posse sob a forma de sesmarias. A expropriação do valor adicional representado pela limpeza da terra e o cultivo anterior significava um ato inicial de acumulação de capital. Cedo, pessoas ainda mais ricas e influentes começaram a reunir recursos suficientes para a exploração agrícola em larga escala. Rio Claro tornara-se, na expressdo local, uma frente pioneira, ou seja, passara a fazer parte do perímetro da economia costeira capitalista e voltada a exportação.

A alienação de terra não eliminou completamente a pequena propriedade. Os que permaneceram, todavia, foram mobilizados para deesempenhar papéis subalternos e dependentes, dentro da economia de exportação. Ao tempo de seu desmembramento de Piracicaba, portanto, o padrão de propriedqde de terras e a estrutura social de Rio Claro eram similares às das cidades do litoral. Todavia, a transformação não fora completa. Era preciso que a classe dos proprietários tirasse lucro de suas terras, de preferência mediante um produto de exportação.

REFERÊNCIA

Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Autor: Warren Dean. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

Análise sobre a fundação de Rio Claro e seu desenvolvimento ao longo do tempo:

  1. Origens e Fundação: A história de Rio Claro remonta ao período colonial brasileiro. Inicialmente, a região era habitada por populações indígenas e, gradualmente, colonizadores europeizados, principalmente caboclos, começaram a se estabelecer na área. Esse processo de ocupação foi impulsionado pela economia da costa e pela construção de estradas que ligavam a região às minas em Mato Grosso.
  2. Expansão da Economia: A região de Rio Claro passou por uma transformação econômica ao longo do século XVIII. Inicialmente, os moradores eram capazes de manter um regime de subsistência e até mesmo praticar algum comércio com as cidades costeiras. No entanto, por volta de 1820, houve uma mudança significativa quando alguns indivíduos ricos e politicamente influentes conseguiram títulos de posse de terras, o que levou à expulsão de muitos dos habitantes originais.
  3. Desenvolvimento Urbano: A vila de Rio Claro se desenvolveu a partir das atividades não-agrícolas, como comércio, carpintaria e joalheria. Em 1842, Rio Claro se tornou um município independente, desmembrando-se de Piracicaba. Esse desmembramento representou um passo importante em direção à autonomia política da região.
  4. Economia de Exportação: A economia de Rio Claro começou a se voltar para a exportação, seguindo o padrão das cidades do litoral brasileiro. A acumulação de capital estava em ascensão, com proprietários de terras buscando lucros por meio da produção de produtos destinados à exportação.
  5. Transformações Sociais: O processo de expulsão dos moradores originais e a concentração de terras nas mãos de poucos proprietários transformaram a estrutura social da região. A pequena propriedade continuou a existir, mas muitos dos pequenos proprietários passaram a desempenhar papéis subalternos e dependentes na economia de exportação.
  6. Autonomia Política: Com seu desmembramento de Piracicaba e a elevação a cidade em 1845, Rio Claro ganhou mais autonomia política e administrativa. A classe dos proprietários de terras desempenhou um papel significativo na política local, com a Sociedade de Bem Comum agindo como um governo local.

Em resumo, a fundação e desenvolvimento de Rio Claro refletem a dinâmica da ocupação e transformação econômica no interior do Brasil durante o período colonial e imperial. A região passou por uma série de mudanças sociais e econômicas, com uma transição gradual para uma economia voltada para a exportação e uma transformação na estrutura social. A autonomia política também desempenhou um papel importante na evolução da cidade, à medida que se desmembrou de municípios vizinhos e se tornou uma entidade administrativa independente.

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