Línguas românicas: Latim vulgar

Todas as línguas vivas apresentam naturalmente uma variação vertical
(correspondente à estratificação da sociedade em classes), e horizontal
(correspondente a diferenças geográficas); além disso, os falantes expressam-se de maneiras diferentes conforme o grau de formalidade da situação da fala.

O latim não poderia escapar a essa regra.

Um aspecto da diversificação da sociedade romana é o aparecimento da
literatura latina; durante muito tempo, os autores latinos procuraram pautar seus escritos pelo ideal da urbanitas, evitando formas ou expressões que conotassem arcaísmo ou provincianismo.

Essa variedade do latim é conhecida como latim clássico.

O latim clássico, porém, é apenas uma das variedades do latim, ligada à criação de uma literatura aristocrática e artificial, que teve seu apogeu no final da República e início do Império.

Outra era a língua efetivamente falada no mesmo período.

As línguas românicas não derivam do latim clássico, mas das variedades
populares. A semelhança entre as línguas românicas deixa entrever que na antiga România, nos primeiros séculos, deve ter sido falada uma língua latina relativamente uniforme.

A essa variedade, que aparece assim como um “protoromance”, isto é, como um ponto de partida da formação das línguas românicas, Diez chamou de latim vulgar, termo com que visava a opô-la ao latim literário.

O proto-romance foi uma língua vulgar no sentido de língua popular,
expressão de camadas sociais que não tiveram acesso à cultura formal e escrita.

O latim vulgar se constituiu ao mesmo tempo que o latim clássico, e já se
encontrava formado, em seus traços essenciais, quando este atingiu seu apogeu.

Isto elimina a hipótese antiga de que o latim vulgar teria surgido da “corrupção” do latim literário.

O latim clássico e o latim vulgar refletem duas culturas que conviveram em Roma: de um lado a de uma sociedade fechada, conservadora e aristocrática; de outro, a de uma classe social aberta a todas as influências, sempre acrescida de elementos alienígenas.

O latim literário aparece como uma língua extremamente estável, ao passo que o latim vulgar inova constantemente.

O latim vulgar foi derivando para variedades regionais que, no fim do primeiro milênio, já prefiguravam as atuais línguas românicas. A essas variedades costuma-se chamar “romances”.

O proto-romance foi uma entre outras variedades de latim falado na sociedade romana, e não foi uma língua escrita.

Desde a formação do latim literário, as pessoas que se propunham a tarefa de escrever, por menor que fosse sua cultura, procuraram fazê-lo usando a variedade culta, que permaneceu como norma por vários séculos.

O uso consciente dos romances na escrita só ocorreu na última etapa de sua
emancipação: costuma-se entender que as línguas românicas nascem quando substituem o latim como línguas escritas, na redação de textos práticos, literários ou de edificação religiosa.

Mas para começar a escrever conscientemente as línguas faladas de seu tempo os letrados românicos precisaram tomar consciência de que o latim, tal como era escrito, além de não ter mais qualquer contato com a língua falada, também se havia distanciado irremediavelmente dos modelos clássicos.

Com o renascimento dos estudos latinos (“Renascença Carolíngea”) pode ser avaliada de maneira mais exata a distância entre o latim e a língua falada, abrindo- se espaço para que os vulgares passassem a ser escritos, em épocas que variam de região para região, mas que se localizam perto do fim do primeiro milênio.

As fontes do latim vulgar:

textos que opõem intencionalmente duas formas de latim;


obras em que o latim vulgar penetra parcialmente;


inscrições;


termos latinos vulgares transmitidos por empréstimo às línguas não-românicas

Características fonológicas do latim vulgar

Perda da duração das vogais – o latim clássico apresentava cinco vogais (a, e, i, o, u), sendo que cada uma podia ser pronunciada com duração longa ou breve; a duração possibilitava distinguir palavras e morfemas gramaticais. No latim vulgar, às diferenças de duração foram-se associando diferenças de abertura que acabaram suplantando as primeiras.

Alterações na natureza do acento – paralelamente à perda da quantidade,
desapareceu em latim vulgar o acento tonal do latim literário que foi suplantado pelo acento “tônico”, ou seja, o acento de intensidade tal como o conhecem hoje as línguas românicas.

A posição do acento da palavra era determinada em latim culto pela quantidade da penúltima sílaba: as palavras do latim clássico são paroxítonas quando a penúltima sílaba é longa e proparoxítonas quando a penúltima sílaba é breve.

O acento de intensidade do latim vulgar recai normalmente na mesma sílaba que era portadora do acento tonal do latim culto.

Posição átona e posição tônica – com o desenvolvimento de intensidade
modifica-se a qualidade tônica ou átona da próprias vogais: os fonemas vocálicos reduzem-se; há uma tendência de as vogais átonas caírem ou contraírem- se.

As métricas românicas: tonicidade e rima – com a perda da quantidade
vocálica, desaparece obviamente a possibilidade de uma poesia baseada na
duração das sílabas, como foi a poesia do latim literário.

A métrica românica recorrerá então a uma contagem de sílabas que se faz até a última sílaba tônica, e a uma distribuição estratégica dos acentos tônicos no verso. A rima aparece inicialmente nos cânticos cristãos como um recurso mnemônico.

Os ditongos – os quatro ditongos do latim clássico (ae, au, oe, eu) reduzem-se a uma única vogal no latim vulgar, e novos ditongos aparecem pela queda de consoantes intervocálicas, ou pela vocalização de consoantes.

Os hiatos – os numerosos hiatos do latim clássico correspondem geralmente a uma única vogal em latim vulgar.

As consoantes – o sistema consonantal do latim clássico compunha-se de 17
consoantes, incluídas as duas semivogais j e w e a aspirada h.

A partir desse sistema consonantal o latim vulgar introduz com o tempo alterações que resultam num sistema que explora mais amplamente o trecho anterior da cavidade bucal, prenunciando a grande variedade de consoantes anteriores que entrarão em contraste fonológico nas línguas românicas.

Características morfológicas do latim vulgar

A morfologia dos nomes – uma característica notável do latim clássico era a riqueza de sua morfologia nominal, caracterizada pela presença de declinações, pela existência de três gêneros gramaticais (masculino, feminino e neutro) e pela formação de comparativos e superlativos sintéticos para os adjetivos.

A perda das declinações – as declinações são cinco paradigmas de
desinências nominais relativas às funções sintáticas dos nomes na oração.
O que distinguia as cinco declinações presentes no latim clássico era a vogal final do tema.

Em cada um desses paradigmas, os substantivos e os adjetivos latinos dispunham de terminações chamadas “casos”, especialmente apropriadas para indicar a função que desempenhavam na frase. Os casos do latim clássico eram seis:

a) o nominativo, que identificava o sujeito das orações com verbo em forma finita;

b) o genitivo, caso do nome dependente de outro nome;


c) o dativo, que identificava o objeto indireto, ou mais exatamente o indivíduo beneficiado (prejudicado) pela ação descrita no predicado;


d) o acusativo, caso do objeto direto, do lugar tomado como ponto final de um movimento e do tempo encarado como duração;

e) o vocativo: e

f) o ablativo, caso da maioria dos adjuntos adverbiais (meio, causa, instrumento etc.), do lugar em que se desenrola uma ação, e do lugar de onde parte um movimento.

Perderam-se as oposições casuais; confundiram-se certos casos: o
nominativo com o vocativo; o acusativo com o ablativo; o genitivo com o dativo.

Como resultado dessas três fusões, o latim vulgar utilizou um sistema de casos em que se opunham o nominativo, o acusativo e um terceiro caso composto por aquilo que restava dos antigos genitivo e dativo.

Reinterpretação dos paradigmas de declinação como expressão do
gênero-tendeu-se para interpretar como femininos os substantivos da 1a.
declinação, e como masculinos, os da 2a. Os substantivos da 3a. declinação
passaram a femininos ou masculinos.

Desaparecimento do neutro – os substantivos neutros acabaram geralmente absorvidos pelos masculinos da mesma declinação.

O grau dos adjetivos – abandono dos processos de formação sintéticos (altus, altior, altissimus) e substituição por perífrases com magis ou plus para o comparativo e multum para o superlativo.

Os pronomes – criação de um pronome de terceira pessoa com base no
demonstrativo ille. A declinação dessa classe de palavras compõe-se de
nominativo, dativo e acusativo.

A morfologia do verbo – em confronto com o latim literário, a morfologia
verbal do latim vulgar apresenta importantes inovações. As principais são:

  • As vozes derivadas do tema do perfeito, que indicavam ação acabada em latim literário, foram reinterpretadas como indicando passado;

Alguns verbos mudaram de conjugação; algumas dessas mudanças prevaleceram apenas em determinadas regiões da România;

Com exceção da primeira, as conjugações tradicionais chegaram a uma espécie de petrificação, deixando de formar-se nelas verbos novos; essa situação foi parcialmente compensada pela criação de uma nova conjugação, baseada na forma de um conjunto de verbos que em latim literário tinham sentido incoativo.

Muitos verbos foram criados por meio de sufixos. Os sufixos -esco e -isco, que formavam verbos incoativos a partir de nome (tipo tabesco, “ficar podre” a partir de tabes, “podridão”), forneceram o paradigma para a criação de um contingente extremamente numeroso de verbos novos.

Perdeu-se a passiva sintética, compensada por uma passiva analítica baseada principalmente no verbo sum;

Desapareceram os verbos depoentes, assimilados aos ativos da mesma conjugação;

Desapareceram vários tempos do indicativo, subjuntivo e imperativo, e várias formas nominais.

O latim vulgar teve um quadro de tempos relativamente limitado:

a) dos seis tempos que compunham o indicativo em latim clássico, apenas o presente, o imperfeito e o perfeito sobreviveram em todas as línguas românicas.

Do futuro restam apenas alguns vestígios insignificantes, porque o futuro sintético foi suplantado por perífrases baseadas em habeo ou volo (expressando compromisso, obrigação, e variando em pessoa e número) + o infinitivo.

Desapareceu também o futuro perfeito e o mais-que-perfeito (excetuando a Ibéria).

b) dos tempos do subjuntivo, conservou-se o presente e desapareceu o perfeito; o imperfeito e o mais-que-perfeito se confundiram; prevaleceu por toda parte, excetuando a Sardenha, a forma do mais-que-perfeito (se eu soubesse).

c) no imperativo, as formas do futuro eram de pouco uso mesmo na língua literária, e a língua vulgar não as conheceu.

Reinterpretação dos tempos do perfectum. A distinção entre infectum e perfectum, no latim clássico, apontava para uma oposição aspectual e não temporal, como no latim vulgar. A perda da distinção de aspecto ajuda a explicar porque certas formas se tornaram dispensáveis, como por ex., o subjuntivo imperfeito e mais-que-perfeito.

Regionalmente, verbos importantes como esse, ire e outros perderam algumas de suas formas tornando- se defectivos; as formas faltantes foram buscadas às vezes em outros verbos de sentido próximo, por um recurso que é conhecido em morfologia como “supletividade”.

As palavras invariáveis – na classe dos advérbios, o latim vulgar perdeu os
recursos morfológicos que permitiam formar advérbios de modo a partir de
adjetivos

.

Características sintáticas do latim vulgar

os adjetivos – o latim literário indicava a matéria de que um objeto é feito por meio de dois recursos: vas aureum; vas ex auro. Prevaleceu a construção preposicional, com a preposição de: vasum de auro.

A substantivação de adjetivos no neutro plural era uma peculiaridade marcante do latim literário, e perdeu-se no vulgar, também pela tendência de reinterpretar os neutros plurais como femininos singulares: per angusta ad augusta; per aspera ad astra; omnia bona mea mecum porto.

pronomes pessoais – o uso não enfático do sujeito pronominal em latim vulgar evoluiu para duas situações distintas: o pronome é hoje obrigatório em algumas línguas românicas (francês), ao passo que é normalmente omitido em outras (português).

O vulgar expressa o pronome objeto, enquanto que o literário deixava que fosse inferido pelo contexto (“assim que viu o pai, abraçou(-o)”).

O reflexivo se assume algumas funções totalmente desconhecidas na sintaxe clássica:

a) realçar a espontaneidade da ação expressa pelo verbo: ir-se, s’en aller.
b) partícula apassivadora: “vendem-se casas”.
c) expressão de reciprocidade. “eles se amam”.
d) índice de indeterminação do sujeito: “aqui não se vive, vegeta-se”.

formas nominais do verbo – Enquanto que o supino se perdeu por completo, o infinitivo presente ampliou consideravelmente seu leque de empregos:


a) como substantivo verbal (“aumenta meu sofrer”);

b) com verbos de movimento, precedido ou não de preposição (“viemos ver”, “mandamos chamar”);

c) regido de preposição, que o torna apto para o papel de complemento nominal (“feliz por saber”, “vontade de fazer”);

d) com sujeito próprio (“infinitivo pessoal”) (“depois de eles chegarem”);

e) como imperativo negativo (“não atravessar”);

f) como oração substantiva reduzida, em contextos de interrogação indireta (“não sei o que dizer”);

g) uso com auxiliares de modo, já comum em latim clássico (“devo dizer”). * De toda a declinação do gerúndio só sobreviveu o ablativo, cujas funções coincidem com a língua clássica, indicando o modo e o meio: morreu lutando.

A partir dessa função desenvolveram-se:

a) expressando causa, condição, sequência etc. (“chegando atrasado, não entra”); são estes empregos, em que o gerúndio equivale a vários tipos de orações subordinadas, que o tornam apto à construção de vários tipos de oração reduzida;

b) indicando atitude, funcionando como um verdadeiro adjetivo verbal (“vi- o bebendo de novo”);

c) formando perífrases verbais (“o teto está rachando”). – preposições – a regência das preposições se alarga para compreender não só advérbio de tempo e lugar (de hoje em diante, daqui até lá), mas também locuções cujo primeiro termo já é uma preposição (dentre eles, para com eles); são a aglutinação de duas ou mais preposições latinas: desde < de ex de.

A sintaxe da oração – a perda dos casos obrigou a buscar novos meios para indicar as funções sintáticas, tarefa que passou a ser desempenhada pela ordem das palavras e pelo uso de preposições.

Regência – Com o desaparecimento do genitivo, o recurso mais importante para indicar subordinação no interior do sintagma nominal passa a ser a preposição de, de uso extensíssimo, ligando o nome núcleo do sintagma nominal a:

a) um adjunto que exprime avaliação (o pobre do João);

b) um aposto (cidade de Roma);

c) um complemento partitivo (alguns de nós);

d) um restritivo (a festa de ontem);

e) um adjunto que exprime qualidade (homem de 90 quilos);

f) um adjunto de matéria (vaso de ouro);

g) um adjunto de destinação (roupa de gala);

h) ao termo que representa no sintagma nominal o sujeito ou o objeto de uma oração subjacente que foi nominalizada (ataque/medo/derrota dos inimigos).

* Os principais complementos de adjetivos são o complemento do comparativo, do superlativo, e de medida.

O primeiro foi expresso por quomodo, no caso de comparação de igualdade (grande como um gigante), por quam ou de no caso de desigualdade (maior que um gigante, mais de cinco); os dois últimos, pela preposição de (maior de todos, uma árvore de três metros).

* No tocante aos termos essenciais e integrantes da oração, o sujeito e o objeto continuaram a ser expressos pelo nominativo e acusativo, mas suas posições na oração tenderam a cristalizar-se antes e depois do verbo.

O objeto indireto passou a ser indicado pela preposição ad. Os verbos que se construíam com duplo acusativo tendem a transformar-se em transitivos comuns (ensinar algo a alguém). De, de+ab passam a introduzir o agente da passiva.

No domínio dos adjuntos adverbiais, as preposições cum, de e outras
concorreram paralelamente:


a) cum, que introduzia originalmente o adjunto de companhia, passou a indicar também:

o meio (mover com uma alavanca), em concorrência com ad (matar à faca) e de (matar de pauladas);

o modo (observar com cuidado), em concorrência com de;

b) de, herdeira de muitos empregos do genitivo e do ablativo, fixou-se também na construção dos complementos de:

tempo, em concorrência com ad (de manhã, à noite); – procedência (partir de Lisboa);

modo (responder de bom grado);

causa (morrer de medo); etc.


c) in e ad repartiram-se a expressão das circunstâncias de lugar;
d) per alternou com a ausência de preposição para indicar a duração (ficar quatro anos/ por quatro anos nesta cidade).

A sintaxe do período – a subordinação no latim vulgar tem um papel muito
menos importante que no clássico: contenta-se em justapor (parataxe) expressões entre as quais o latim clássico explicitaria nexos de dependência (hipotaxe).

orações substantivas – pertencem à classe das substantivas os dois tipos
oracionais em que o latim vulgar mais se afasta do uso do latim clássico, a saber as substantivas declarativas e as substantivas interrogativas indiretas.

As orações subordinadas exigidas pelos verbos que indicavam ações de dizer, pensar, perceber e sentir eram construídas em latim literário como “orações de acusativo e infinito”, assindéticas (sem conectivos), foram suplantadas, no vulgar, por construções sindéticas com o conectivo quod (ou quia, quid) (eu sei que tudo isso é mentira).

As orações interrogativas constituíam em latim clássico um tipo bem
caracterizado, seu verbo ia para o subjuntivo e o nexo com a oração regente era expresso por uma série de conjunções e pronomes usados apenas em contextos interrogativos. O vulgar substituiu o subjuntivo pelo indicativo e os conectivos perderam a especificidade.

orações adjetivas – a perda quase total da declinação dos pronomes relativos fez com que aparecesse o tipo de construção que é hoje o mais comum no português falado do Brasil, e que consiste em retomar o relativo por meio de um pronome pessoal, antepondo a ele e não ao relativo, a preposição exigida pelo verbo da subordinada: o menino que falei com ele.

orações adverbiais – duas tendências se afirmam nas orações adverbiais do latim vulgar:
a) perde terreno o subjuntivo, que funcionava em latim clássico como uma espécie de modo da subordinação;
b) generaliza-se o uso de quod/quid como conectivo de valor múltiplo em
substituição aos conectivos específicos da língua clássica.

De todos os tipos de subordinada adverbial, as que sofreram as alterações mais profundas foram as condicionais.

O léxico em latim vulgar – o léxico latino vulgar pode ser descrito em duas
partes:
a) processos mais produtivos para a formação de palavras novas, sob um caráter marcadamente morfológico, pela discussão das noções de composição e derivação;

b) mudanças de sentido, sob um caráter marcadamente semântico.

Processos de formação de palavras – distinguem-se tradicionalmente dois
grandes processos:


a) a composição, que compreende por sua vez a composição propriamente dita ou justaposição (res + publica = república) e a prefixação (sub + mittere = someter);

b) a derivação, que pode ser própria, isto é, baseada no uso de sufixos
(quercus + ea > quercia), ou imprópria, isto é, baseada na transferência de uma palavra de uma classe morfossintática a outra (katá, preposição grega, dando pronome indefinido português cada).

Processos de formação de palavras

Distinguem-se tradicionalmente dois grandes processos:


a) a composição, que compreende por sua vez a composição propriamente dita ou justaposição (res + publica = república) e a prefixação (sub + mittere = someter);

b) a derivação, que pode ser própria, isto é, baseada no uso de sufixos
(quercus + ea > quercia), ou imprópria, isto é, baseada na transferência de uma palavra de uma classe morfossintática a outra (katá, preposição grega, dando pronome indefinido português cada).

Mudança de significado – entre outras, pode-se destacar cinco ordens de
circunstâncias (Ullmann, 1962): linguísticas, históricas, sociais, psicológicas e de necessidade de um novo termo.


a) Circunstâncias linguísticas – uma palavra pode mudar de significado por razões estruturais/contextuais; uma palavra pode deixar de pertencer ao léxico comum e passar a fazer parte dos recursos gramaticais da língua.
Non uidi rem natam (Não vi coisa nascida/criada) > não vi nada; não quero nada; não disse nada…
b) Circunstâncias históricas – Monere (admoestar, dar conselhos) > moeda, moneda, monnaie, moneta. O nexo entre os dois significados: os romanos veneravam a deusa Juno como boa conselheira e mãe das musas; nesse mesmo templo funcionava também a prensa em que se cunhavam as moedas romanas.
c) Circunstâncias sociais – uma palavra pode ter sua significação alterada (por especificação ou generalização) ao passar do uso de um grupo fechado para o domínio comum ou vice-versa. Sancio (proibir) > sanctus, e uir (varão) > uirtus representavam respectivamente a propriedade de ser intocável por razões religiosas e as prerrogativas de virilidade que se esperam do homem numa sociedade tipicamente machista (força física, habilidade para a guerra, etc). O Cristianismo reinterpretou estas palavras, entre outras, no contexo de seus próprios valores: uirtus passou a significar força moral, e sanctus, a bem- aventurança extra-terrena e o tipo de conduta terrena necessária para merecê-la. Este tipo de alteração é descrito como um caso de especialização de sentido. Como exemplo de generalização de sentido, pode-se exemplificar com o verbo latino impedire, em português impedir. Em sua significação primitiva, no verbo latino, estava ainda presente a imagem do pastor que derruba a ovelha segurando-a pelos pés (pes, pedis) com o cajado; era um termo de pecuária. Em sua passagem ao vocabulário comum subsistiu apenas a ideia de obstáculo (de qualquer tipo).
d) Necessidades de denominação – correspondentes ao aparecimento numa cultura de objetos, técnicas ou noções novas. Quando estes são importados de povos vizinhos, é comum que seja simultaneamente adotado o termo que os designava na cultura de origem; quando surgem dentro da própria comunidade linguística é mais comum criar-se sentidos novos para palavras já existentes. A extensão e a criação metafóricas de sentido correspondem à catacrese – figura de linguagem já conhecida por Aristóteles.

Fatores psicológicos como o medo, a delicadeza ou a decência podem criar algum tipo de necessidade de denominação. A existência de palavras tabu explica o uso linguístico de outras palavras e a ampliação dos sentidos destas por eufemismo; mas no confronto entre o latim clássico e o vulgar o que aparece é frequentemente o disfemismo, isto é, a busca de expressões que desqualificam a realidade a que se faz referência.

Dimensões da mudança de significado – as mudanças se dão ao longo de três linhas principais:

a) metafórica – duas realidades são representadas como similares aplicando- se lhes o mesmo significante. O vocabulário, aplicado a realidades diferentes na tentativa de compreendê-las, sofre naturalmente ampliações e alterações de significado. Pecunia, peculium, peculatus < pecus, pecoris.

b) metonímica – o significado primitivo e o posterior à mudança se relacionam por algum tipo de contiguidade. Busto – lugar onde havia incinerado algum cadáver. O hábito de plantar nesses lugares esculturas de meio corpo representando os defuntos ilustres deu origem ao sentido atual.

c) especificidade – mesmo quando a reconstituição aproximativa do significado de uma expressão é possível, não é sempre fácil apontar a circunstância aproximativa que atuou como fator determinante. Cubare (dormir) > ital. covare (chocar ovos).

Preferências e diferenças regionais – algumas diferenças referentes ao vocabulário hoje observadas entre as línguas românicas já deviam estar presentes ao menos como preferências regionais no latim vulgar falado durante o Império.

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