O tráfico de escravos transatlântico, ocorrido principalmente entre os séculos XVI e XIX, foi um dos eventos mais sombrios da história, onde milhões de africanos foram capturados, vendidos e escravizados nas Américas. Esse período sombrio é frequentemente abordado em poesia e literatura, como no poema “Peça da Índia”, que oferece uma perspectiva única sobre esse capítulo triste. Neste texto, vamos explorar como o poema se conecta ao comércio de escravos, com ênfase nas conchas como meio de troca, bem como no papel da Igreja na justificação e compra e venda de escravizados, considerando o contexto do século XVII e as principais ordens eclesiásticas da época.
O Poema “Peça da Índia”
O poema “Peça da Índia” é uma obra poética que utiliza metáforas e simbolismo para transmitir mensagens poderosas sobre o tráfico de escravos. Escrito por um autor desconhecido, o poema revela elementos importantes desse comércio brutal, que estava em seu auge no século XVII.
Peça da Índia Açoite-me, Esconda-me, Ignore-me Em seu cabedal! Em pesadelos, regozija-lo-ei: Olhos negros da Guiné, De joelhos ou em pé, Da mina, o rubro licor tinge a eclesiástica escritura... Lisura! Lisura! Lágrimas d'alma, Contidas em conchinhas Em historinhas capuchinhas, Lembrancinhas, lembrancinhas... Erguei-vos dos Sobas aos sofás, Quiçá, salve as crias de leite, Ignore as crias de pé: -Humilhe-me, -Assente-me! Não és crente! Não és crente! Nas pias, sem um pio, Nas mesas, velas acesas Nos batentes, seu bafo quente, No grito, o ranger dos dentes, Na aurora, a missa tranquila, Com o arrastar das correntes, no balançar dos pingentes, Essa gente preta consente? O que sentes? Não sentes? Nos urros do gentio, nos morros, mocambos, nos terreiros, - Dona Maria, nos subempregos, sossego? No oco do estômago, nas rugas cruas Nas lamúrias, nos choros, nas cadeias sujas, nas câmaras, nas custódias, Na vadiagem e homicídios, nas feridas e nas mentes: -Comentes, comentes! No tombo da gente do Congo, Nas crias sumidas na escuridão de Luanda - No porão, de bruços: - Sem soluços! Sem soluço! A toda a miséria, a ti o meu corpo, -A gentalha que nosso progresso atrapalha, Não percebes a dívida a ser paga, paga? No cetim ou na arruaça, No fumo de corda ou na cachaça, dos engenhos as esmeraldas Do banto ao quibundo Do afogado ao astuto, Do país que ignora e "sabe tudo"? - Tudo!
Conchas como Moeda:
Um dos aspectos mais intrigantes do poema é a menção às conchas. No contexto do tráfico de escravos, as conchas eram frequentemente usadas como moeda de troca. Os comerciantes europeus trocavam essas conchas por africanos capturados, que eram então transportados para as Américas como escravos. Essa prática desumana é refletida nas linhas do poema que mencionam “Lágrimas d’alma, contidas em conchinhas”, sugerindo que as histórias e o sofrimento dos escravizados eram reduzidos a meros objetos de comércio.
O Papel da Igreja no Século XVII:
No século XVII, a Igreja desempenhou um papel complexo durante o tráfico de escravos transatlântico. Enquanto algumas ordens eclesiásticas, como os jesuítas, eram críticas da escravidão e buscavam proteger os direitos dos indígenas nas colônias, outras ordens, como os dominicanos, estavam mais diretamente envolvidas no comércio de escravos. A Igreja frequentemente justificava a escravidão por meio de interpretações seletivas da Bíblia, citando passagens que supostamente apoiavam a prática. Isso contribuiu para a legitimação da escravidão pelos poderes coloniais europeus.
Outros Elementos do Poema:
Além das conchas e do papel ambíguo da Igreja, o poema faz referência à origem africana dos escravos, suas condições de vida nas plantações, a resistência e luta pela liberdade, e a exploração contínua mesmo após a abolição da escravatura. Tudo isso é apresentado em uma linguagem poética e simbólica, desafiando os leitores a refletirem sobre as injustiças do passado.
O poema “Peça da Índia” oferece uma visão profunda e emocional do tráfico de escravos transatlântico, destacando a desumanização das pessoas africanas reduzidas a conchas como moeda de troca e o papel ambíguo da Igreja no século XVII, com diferentes ordens eclesiásticas adotando posições diversas em relação à escravidão. Escrito por um autor desconhecido, o poema serve como uma lembrança poderosa de que nunca devemos esquecer as lições do passado e a complexidade das instituições envolvidas nesse período sombrio da história.
Peça da Índia e Navio Negreiro
A análise comparativa entre o poema “Peça da Índia,” composto em setembro de 2023, dedicado a Antonio Archangelo, e o renomado “Navio Negreiro,” escrito por Castro Alves em 1869, revela interessantes semelhanças e contrastes em relação à abordagem de temas relacionados à escravidão e à opressão, bem como a diferentes aspectos de estilo e ênfase temática.
Primeiramente, é crucial contextualizar essas obras. “Peça da Índia,” embora não esteja vinculado a um contexto histórico explícito, parece aludir a questões contemporâneas, explorando a persistência das consequências da escravidão e da opressão até os dias atuais. Por outro lado, “Navio Negreiro” de Castro Alves foi produzido em um período em que a escravidão era uma realidade no Brasil do século XIX, descrevendo vividamente as duras condições dos escravos durante sua travessia atlântica.
Em termos de estilo e abordagem, “Peça da Índia” utiliza uma linguagem poética densa e imagens vívidas para transmitir suas mensagens. O poema emprega repetição e perguntas retóricas de maneira significativa para envolver o leitor na reflexão sobre as questões levantadas. Em contrapartida, “Navio Negreiro” de Castro Alves é uma obra de poesia épica, caracterizada por uma narrativa mais direta e dramática. O poema utiliza métrica e rima para criar um ritmo intenso e emocionante, que intensifica a empatia do leitor com o sofrimento dos escravos.
Outro aspecto relevante é o foco nas vítimas da opressão. “Peça da Índia” menciona as vítimas, mas também questiona a moralidade da sociedade como um todo, ampliando seu escopo. Por outro lado, “Navio Negreiro” de Castro Alves coloca um forte foco nas vítimas, descrevendo detalhadamente a agonia física e emocional dos escravos a bordo do navio negreiro. O poema busca incitar a indignação e ação direta contra a crueldade da escravidão.
Em termos de mensagem subjacente, “Peça da Índia” pode ser interpretado como um chamado à consciência social e à reflexão sobre as questões históricas e contemporâneas relacionadas à opressão, sugerindo uma complexa teia de responsabilidade compartilhada. Enquanto isso, “Navio Negreiro” de Castro Alves é uma denúncia emocional e contundente da escravidão, com o propósito de despertar uma profunda indignação na sociedade e inspirar ações para erradicar essa injustiça.
Em conclusão, a leitura de ambos os poemas, “Peça da Índia” e “Navio Negreiro,” é altamente recomendável para aqueles interessados em explorar a complexidade das questões relacionadas à escravidão, opressão e justiça social. Essas obras oferecem perspectivas distintas e complementares sobre esses temas, enriquecendo o entendimento e a reflexão crítica sobre essa parte sombria da história e suas ramificações contemporâneas.
Leia o poema na íntegra em: https://poesiasnonsense.blogspot.com/2023/09/peca-da-india.html