Odisseia: Livro III

LIVRO III

O Sol, do pulcro lago ressurgindo,
Em céu de bronze alumiava os deuses
E n’alma terra os homens, no abordarem
A celsa Pilos de Neleu fundada,
Em cuja praia ao criniazul Netuno
Touros em tudo negros imolavam:
Eram bancadas nove e de quinhentos,
Bois nove a cada grupo. Ao nume as coxas,
Consumidas as vísceras, ardiam,
Quando, ferrado o pano, em terras saltam.
Guia e instrui a Telêmaco Minerva:
“Não mais te acanhes, pois rasgaste os mares,
A inquirir onde vive ou jaz Ulisses.
Presto, a Nestor doma-corcéis; vejamos
O que há na mente, rogá-lhe a verdade;
Nem ele mentirá, sisudo e probo”.
“Como hei de, respondeu-lhe, apresentar-me?
Como saudá-lo? Sou, Mentor, noviço
Em discorrer com tento, e me envergonho
De interrogar um velho”. — E a de olhos zarcos:
“Telêmaco, tua alma há de inspirar-te,
E um nume sugerir-te; eu não te julgo
Nado e nutrido sem favor celeste.
Então se apressa, e o príncipe atrás segue
Dos Pílios ao congresso, onde se achavam
Nestor e filhos, que o banquete aprontam;
Quem assa, quem no espeto a carne enfia.
Ao vê-los grande número os abraça
E convida ao festim. Primeiro a destra
O Nestório Pisístrato lhes toma,
Entre o irmão Trasimedes os coloca
E seu pai n’alva areia e moles peles;
Porção de entranhas lhes oferta; o vinho
Em áureo copo vaza, e reverente
Fala à prole do aluno de Amaltéia:
“Hóspede, ao rei Netuno ora conosco,
A porto chegas para o seu festejo.
Liba e depreca, é justo, e ao sócio passes

Ulisses na ilha de Calypso (1833), parque do castelo de Compiègne .

O doce vinho com que os Céus invoque;
Todos, julgo, dos Céus necessitamos:
Jovem comigo em anos emparelha;
Terás primeiro o copo.” E aqui lho entrega.
Contente Palas do varão cordato,
Que a velhice acatava, assim perora:
“Digna-te, Enosigeu, de ouvir meus votos!
Honra a Nestor e os filhos, agradece
A completa hecatombe aos outros Pílios;
Dá-me e ao sócio o voltarmos tendo obtido
O que imos procurando a remo e vela”.
O rito já preenche, e traspassado
O bicôncavo copo, à risca o mesmo
Faz o Ulisseu mancebo. Do braseiro
Tirando, assados superiores trincham,
O solene festim lauto celebram.
Vencida a sede e a fome, satisfeitos
Completamente os hóspedes, o velho
Gerênio cavaleiro os interroga:
“Donde vindes cortando as salsas vagas?
Traficais? ou piratas sois errantes,
Que para dano alheio a vida expondes?”
De Minerva Telêmaco animado,
Por ter informações do herói famoso
E nome entre os mortais, responde afouto:
“Nestor Nelides, ó da Grécia adorno,
Direi quem somos: de Ítaca selvosa,
Não público negócio, mas privado,
Que vou contar sincero, aqui nos trouxe;
Vogo após o rumor do pai querido
O longânimo Ulisses, que a teu lado
Soa haver sovertido os muros Teucros.
Já consta o fim de quantos lá pugnaram;
Mas Jove esconde o seu: ninguém me explica
Se a mãos hostis em terra há sucumbido
Ou soçobrou nas águas de Anfitrite.
Os pés te abraço, o fado seu declara,
Se o viste, ou se narrou-te um peregrino.
Sem dita ah! veio do materno ventre!
Por dó nada me ocultes, eu to rogo;
E, se a ti fiel sempre, em dito e feitos,
Foi na guerra onde Aqueus sofreram tanto,
Isto lembre-te agora e não me iludas.”
A quem Nestor: “Os males me recordas

Leucoteia, museu do Louvre. Na mitologia grega, era uma antiga deusa do mar, que se manifestava sob a forma de uma ninfa transformada.

Que entre esse povo, amigo, suportamos,
Ou quando errantes pelo escuro pego
A depredar nos conduzia Aquiles,
Ou no cerco dos muros Priameios
De heróis sepulcro: o márcio Telamônio,
O Pelides caiu, lá jaz Pátroclo
Em destreza divina, lá meu filho
Antíloco gentil, ágil, brioso.
Mas quem memoraria as outras penas?
Fiques cinco ou seis anos, que no meio
Da narração com tédio voltarias.
“Um novênio mil dolos maquinamos;
Jove a custo pôs termo a tantas lidas.
Aos demais nos ardis se avantajava
Teu pai, se o é: com pasmo eu vejo o imitas,
Moço egrégio, em facúndía e gesto e porte.
Nunca, no parlamento ou no conselho
De Ulisses dissenti, por bem dos povos.
Derruída Ílion celsa e a velejarmos,
O Supremo em furor dispersa os Dânaos,
Que todos justos nem prudentes eram;
Muitos vítimas foram da olhigázea
Prole de iroso pai, que entre os Atridas
A discórdia acendera. Os dous, à tarde
Contra o costume os nossos convocando,
Que do vinho turbados concorreram,
O motivo expressaram da estranheza:
Queria Menelau que o dorso imano
Talhássemos do mar; o irmão queria
Deter-nos, e com sacras hecatombes
A Minerva aplacar. Cegueira e insânia;
Fácil do intento um nume não se abala.
Insultam-se os irmãos, e Argeus grevados
Com sinistro alarido em pé disputam;
A noite, infenso o Padre, uns contra os outros
A excogitar velamos. N’alva, os lenhos
Deitam-se ao divo salso mar, de escrava
Alticintas onustos e do espólio:
Fica-se em torno ao rei dos reis metade,
Metade voga. Um deus amaina as ondas,
E em Tênedos portados, suspirando
Pelo saudoso lar, sacrificamos.
Aumenta o mal, nova descórdia surde:
Vários, ao sumo. Atrida por obséquio,

Helena e Menelau Por Goethe-Tischbein, 1816

Após o cauto Ulisses retrocedem
Nos meus navios fujo, pressentindo
Os desígnios de Júpiter funestos,
E Tidides me segue e os seus com ele
Mais tarde Menelau nos topa em Lestos
Na extensa rota a meditar: se, Psíria
Dobrando à esquerda, iríamos acima
Da alpestre sáxea Quio ou desta abaixo,
Singrando ao longo da ventosa Mimas.
Rogávamos ao deus, que acena e manda
Esquivarmos na Eubéia algum desastre:
Brama o vento, e sulcando o mar piscoso,
A Geresto os baixéis de noite abordam;
Atravessado o pélago, a Netuno
Sagramos táureas coxas. Entra em Argos
Ao quarto dia a Diomedéia frota;
A Pilos me encaminho, sem que afrouxe
A brisa que souprou-me o Céu benigno.
Assim, meu filho, nada sei dos Graios,
Salvos ou perecidos; mas te explano
Quanto em meu teto já me tem constado:
Corre que os bravos Mirmidões lanceiros
Pôs em casa o de Aquiles digno gérmen;
Que os seus pôs o Peâncio Filoctetes;
Que, em feliz travessia, o rei Cretense
Todos já recolheu de Tróia escapos.
De Agamemnon lá mesmo a sorte ouviste:
Caro custou seu crime a Egisto infame.
Quão belo um nobre herdeiro, como Orestes,
Que o pai vingou no pérfido homicida!
Amigo, sê também, se és guapo e esbelto,
Sê de valor e esforço, e o mundo assombres.”
E o mancebo: “Ó Neleio, Aquiva glória,
Sim, foi justa a vingança; honrado sempre
Orestes há de ser. Tivesse eu forças
Contra insolentes e molestos procos!
Eu nem Ulisses venturosos fomos;
Cumpre-nos suportar.” — Contesta o velho:
“Que me lembras? A fama aqui me veio
Dos que oprimem-te e a casa te arruinam,
Requestando a Penélope. Abaixaste
O colo ao jugo, ou por supremo influxo
Aborreceu-te o povo? Inda quem sabe
Se o pai sozinho ou com geral apoio,

Não puna ultrajes tantos? Oh! Minerva
(Nunca um deus a mortal foi tão propício)
Te protegesse com o amor que tinha
Em Tróia exicial ao grande Ulisses!
Eles de boda a sede apagariam.”
Telêmaco porém: “Prometes muito;
Espantas-me, ancião, mas nada espero,
Nem que os numes o queiram.” — “Desses dentes,
Minerva acode, que proferes, néscio?
A quem quer favorece ao longe um nume.
Prefiro demorar-me entre fadigas
E ver o dia do regresso à pátria,
A sucumbir no lar como Agamemnon,
Pela traição de Egisto e Clitemnestra.
Contudo os imortais salvar não podem
Da condição comum qualquer valido,
Se a Parca o empolga para o sono eterno.”
Telêmaco atalhou: “Mentor, cessemos,
Bem que isso me interessa: aparecer-nos
Veda-lhe o seu destino. De outro assunto
Me esclareça Nestor, que em três idades
Se diz que reina, excele na justiça,
É na presença um deus. Como foi morto
O rei dos reis? como um varão mais forte
De Egisto ao braço pereceu doloso?
Onde era Menelau? Certo, ó Nelides,
Longe errava da Argólida ao momento
Que a tal flagício o pérfido arrojou-se.”
Então Nestor: “Sabê-lo vais, meu filho.
Ponderas bem; se à volta o louro Atrida
Inda o encontrasse, a Egisto sobre a cova
Ninguém terra espargira, e na campanha
Tivera sido a cães e abutres pasto,
Sem que uma só mulher chorasse o monstro.
Nós em altas façanhas, ele estava,
Lá num retiro de Argos pascigosa,
A seduzir em ócio com branduras
A nobre Clitemnestra, que a princípio
Resistiu, roborada na virtude
Por um poeta que, ao partir, o esposo
Ao lado lhe deixou; mas, quando Egisto
Pôs numa ilha deserta o Aônio aluno,
Que o Céu votara às aves de rapina,
De grado ela se foi do amante à casa:

Conseguido o que nunca obter cuidava,
Muita perna de rês queima nas aras,
Muita imagem pendura, alfaias, ouros.
Parto com Menelau, que me era unido;
Próximo ao sacro promontório Súnio,
Febo asseteia-lhe o Onetório Frôntis,
Que meneava o leme, sem segundo
Em dirigir a proa nas tormentas.
Bem que à pressa, em Atenas celebrados
O enterro e funerais, o Atrida segue
Pelo sombrio pélago, e nas águas
Do cabo Maléia, o imbrífero Tonante
Solta estrídulos ventos e em montanhas
Incha escarcéus; dispersa, a frota em parte
A Creta arriba, onde os Cídones moram
Às abas do Járdano. Alcantilada
Nos Gortínios confins se eleva rocha
Do escuro ponto, e ali maretas Noto
Quebra em Festo ao sinistro promontório;
Pelo pequeno escolho divididas:
Naufraga, e apenas a campanha livra
Menelau, que em cerúleas proas cinco
O sopro e as ondas para o Egito impelem.
Enquanto vaga entre homens de outra língua
E as naus de outro carrega e mantimentos,
Perfaz o dolo Egisto, e por sete anos
Duro impera em Micenas opulenta;
No oitavo, o divo Orestes vem de Atenas,
Vinga seu pai ao matador matando,
E ao sepulcral banquete assenta os Gregos
Do imbele adúltero e da mãe perversa:
O afável Menelau surge esse dia,
Nos baixéis de riqueza abarrotados.
Não muito e longe dos soberbos andes,
Que devorem-te a casa e os bens repartam:
Seria, amigo, péssima a viagem.
Eu te aconselho a visitar o Atrida,
Que veio donde vir já não pensava,
Por temporais jogado além do horrendo
Pélago vasto, que nem aves podem
Num ano atravessar. Ou corta os mares
No teu navio, ou se por terra queres,
Dou-te meu carro, e os filhos te conduzam
De Esparta à nobre corte: a preces tuas,

O probo rei te falará sincero.”
Caído o Sol, adverte a gázea Palas:
“Sábio discorres, velho, mas das vezes
Talhem-se as línguas, e mesclado o vinho,
Libemos a Netuno e às mais deidades:
Hora é de repousar; sepulto o lume
Na opaca treva, recolher-nos cumpre
Deste festejo.” — Todos lhe obedecem:
Dão água às mãos arautos; as crateras
Coroando moços, distribuem copos
Em derredor; e, no brasido as línguas.
Em pé libam de novo e à larga bebem.
Já Minerva e Telêmaco desejam
Tornar-se a bordo; mas Nestor o impede:
“De vos deixar partir o Céu me guarde,
Como infeliz trapento, a quem falecem
Agasalhos de mantas e tapetes:
Hei tudo, e à farta; no convés não durma
Do amigo o nada; eu vivo, ou meus herdeiros,
Para hospitais deveres exercermos.”
“Justo, ancião, discorres, diz Minerva:
Aqui pernoite o príncipe contigo;
Vou confortar a gente e prover tudo.
Prezo-me eu só de velho; os mais vieram
Eqüevos e a Telêmaco votados.
Hei de a bordo encostar-me, e alvorecendo,
Aos honrados Caucomes dirigir-me,
Antiga a recobrar grossa quantia
Em coche um dos teus filhos o encaminhe,
Rijos lhe empresta alípedes cavalos.”
Dali, como um xofrango, a de olhos garços
Desaparece com geral assombro;
A Telêmaco a dextra o velho aperta:
“Não serás, filho, imbele e sem virtude,
Pois tão jovem te assiste uma deidade;
É certamente a predadora Palas,
Que a teu pai distinguia. Oh! tu rainha.
Glorifica-me e a prole e a casta esposa!
Imolarei do jugo intacta aneja,
De larga fronte com dourados cornos.”
Aceita a prece, à régia com seus filhos
E genros parte; e, em ordem colocados,
Ele o vinho mistura de anos onze.
De ânforas que destapa a despenseira,

Brinda e roga à do Egífero progênie.
Para dormir, saciados se despedem:
Nestor o diviníssimo Ulisseida
Retém no paço, e ao pórtico sonoro
Um recortado leito lhe oferece,
De Pisístrato perto, belaz chefe,
Inda na adolescência; o rei descansa
Num retrete recôndito, onde a cama
Afofara a consorte veneranda.
Ao roxear da pudibunda aurora,
Surge Nestor, ante o portão repousa,
Em alva pedra a óleo bem polida,
Poial já de Neleu, divino engenho:
Ali, depois que a Dite o pai descera,
Soía aquela dos Argeus custódia
O cetro alçar. Das câmaras saídos,
Cercavam-no Equéfron e Estrácio e Areto
E Perseu e o deiforme Trasimedes,
Sexto Pisístrato, o menor da estirpe.
Era Telêmaco, a imortais parelho,
Junto ao régio Nestor, que assim começa:
“Filhos, eia, a Minerva engrandeçamos,
Que ao solene festim vi manifesta:
Um corra ao prado em busca do vaqueiro,
Que uma novilha traga; outro aqui chame
O ourives Laerceu, que doure os cornos;
Ande à nau de Telêmaco o terceiro,
E os nautas, menos dous, nos apresente.
Ficai-vos os demais; que as servas dentro
Lauta mesa aderecem, que nos sirvam
De cadeiras e lenha e de água pura.”
Tudo obedece: A rês do campo chega;
De Telêmaco chega a marinhagem;
Com bigorna e alicates e martelo,
Utensílios do ofício, o fabro chega;
Chega Palas e atenta a cerimônia.
Ouro Nestor fornece; o artista o assenta,
Para a deusa alegrar, da rês nos cornos;
Por estes Equéfron e Estrácio a levam.
Traz de cima em bacia floreada
Água Areto, e uma serva em cesta molas;
Afiada o guerreiro Trasimedes
Secure empunha, a golpear disposta
Para o sangue aparar Perseu tem vaso;

Perseu com a cabeça da Medusa Antonio Canova Museus Vaticanos

Ora o pai, água esparge e farro pio,
Ao fogo lança da cabeça o pêlo.
Finda a prece, o Nestório Trasimedes,
Rápido os nervos cervicais talhando,
As forças lhe dissolve; em gritos rompem
Filhas e noras, a pudica esposa,
Eurídice, a maior das de Clímeno;
Do chão vasto a novilha erguem, sustentam,
E Pisístrato príncipe a degola:
Mana o sangue da vítima, que expira.
Partem-na; e, como é rito, as cérceas coxas
Cobrem de pingue dúplice camada,
Postas várias por cima; o velho as torra,
Negro vinho entornando; ao pé mancebos
Bons espetos sustêm qüinqüedentados.
Ossos combustos, vísceras comidas,
Picam-se as carnes, que enroscadas assam,
Os pontudos espetos revirando.
Filha menor, a bela Policasta
O hóspede lava; e, de óleo perfumado,
Ele, em túnica nova e gentil manto,
Saiu do banho com divino aspecto,
Junto abancou-se do pastor de povos.
Pronto o assado e o banquete, os mais prestantes
O vinho em copos de ouro em pé transfundem.
Repleta a fome e a sede, ei-lo o Gerênio:
“Filhos, ora a Telêmaco parelha
Crinita ao carro atai.” — Sem mais delonga,
Jungidos os corcéis, mete a caseira
Pão, vinho, provisões que os reis costumam;
Sobe Telêmaco à formosa biga;
Da juventude príncipe, o Nestório
Pisístrato a seu lado as rédeas move
E açouta os brutos, que por gosto arrancam
Da árdua Pilos formosa. O dia inteiro
De uma e outra banda o jugo não sossega,
Té que, ao Sol posto, em Feres se dirigem
A Díocles, de Ortíloco nascido,
Que o foi do rio Alfeu: lá pernoitaram
Em jocunda pousada; e, mal fulgia
A manhã dedirrósea, a biga jungem
Ao vário coche, e os brutos flagelados
Ledos voam do pórtico estrondoso.
Por frugífero campo atravessando,

A carreira os ungüíssonos terminam,
Quando as veredas obumbrava a tarde.

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