Quando falamos do idioma dos brasileiros, o Português brasileiro, precisamos, a priori, realizar um pequeno e singelo resgate histórico que evidencia que desde a criação ao apogeu, a expansão dessa língua neolatina é uma história de guerras, conquistas e subjugação dos povos conquistados ao redor do mundo. Vamos começar nossa viagem no surgimento do que se convencionou chamar de “Latim Vulgar”.
Latim Vulgar
Diferente do latim clássico, destinado a elite romana, o latim vulgar era o idioma das colonias e da expansão do império romano por toda a Europa. Pois,
“…a grande diferença entre as duas variedades do latim não é cronológica (o latim vulgar não sucede ao latim clássico), nem ligada à escrita, senão social. As duas variedades refletem duas culturas que conviveram em Roma: de um lado uma sociedade fechada, conservadora e aristocrática, cujo primeiro núcleo seria constituído pelo patriciado; de outro, uma classe social aberta a todas as influências, sempre acrescida de elementos alienígenas, a partir do primitivo núcleo da plebe”.
(Ilari, 1992:61)
Veja no quadro e no vídeo as variações do latim

Expansão romana
No final da luta vitoriosa com a potência mundial de Cartago, deu-se, a partir de 146 a. C., a ocupação romana da região costeira do norte da África, onde se situam, atualmente, a Tunísia e a Algéria. Quase ao mesmo tempo da destruição de Cartago, resultou a conquista da Grécia. Por volta do ano 140 a. C., Roma pôde ser considerada soberana de toda a bacia central e ocidental do Mediterrâneo. No ano 40, aproximadamente, completou-se a dominação romana de toda a Gália, até o Reno; a partir dessa época, a expansão romana cresceu numa seqüência irresistível. O Egito caiu, também, sob o domínio romano. Após a batalha de Ácio, em 31 a. C., na qual Otávio venceu Antônio e Cleópatra, o Egito foi reduzido a província romana. Nos primórdios do século II, sob o imperador Trajano, o império romano atingiu sua expansão máxima na Europa.
À expansão do poderio político seguiu-se uma penetração cultural decisiva. Os povos subjugados aceitaram, em sua grande maioiia, rápida e passivamente, a língua latina. Mesmo nas cidades do norte da África, onde atualmente ficam a Algéria e o Marrocos, prevalecia, no século III, a língua latina. Somente onde foi estabelecido contato com o mundo grego, mostrou-se, como elemento mais forte, a língua grega. Isto é válido, não só para a Grécia em si, como também para a Ásia Menor, o Egito e Cirene. Até mesmo na antiga Magna Grécia, atual Sicília, depois da conquista das cidades coloniais gregas, a língua grega ofereceu, até a Idade Média, resistência ao latim, principalmente em algumas regiões, como na Sicília Oriental.
Somente poucos, como, por exemplo, os bascos, conseguiram resguardar sua língua, frente à onda de romanização. Mas as línguas pré-românicas extintas não deixaram de influenciar o latim falado nas províncias romanas. Assim pode-se, ainda hoje, constatar, porexemplo no francês, vestígios da língua gaulesa extinta, língua esta falada pelos habitantes primitivos da Gália, atualmente França, antes da conquista romana. O latim foi depauperado, ainda, devido a outras influências, pois a seguir à expansão máxima do império romano, houve, lentamente, um retrocesso; e, no século V, a catástrofe política. Povos germânicos, principalmente francos, godos, alamanos, baiuvaros, borguinhões e vândalos, invadiram as fronteiras do Império.
A derrota política trouxe consequências limitadas à continuidade da língua latina, mas a língua dos francos deixou, por exemplo, no francês, vestígios imensos: français significa, na verdade, nada mais que “franco”.
*Trecho retirado de “O LATIM VULGAR ESBOÇO HISTÓRICO E LINGÜÍSTICO”, de Theodor Fritsch (p. 123-124)
Situação Anterior às Conquistas: “Substratos” e Línguas de Cultura
Península Itálica e Ilhas: | Umbro, Osco, Grego, Celta, Etrusco, LígureFenício (Ilhas) | Indo-Europeu (r. Itálico), Indo-Europeu (r. Ilírico), Não Indo-Eupropéias, Semita |
Províncias Ocidentais ex. Ibéria: | Ibero, Vascão, Celtibero | Não Indo-Europeu, Não Indo-Europeu, Indo-Europeu |
Províncias Orientais ex. Síria:ex. Egito: | [Grego: língua de cultura] | (Semita)(Camita) |
Somente nas periferias mais afastadas do Império Romano, a língua latina foi repelida e diluída. Assim, a língua latina conseguiu permanecer intacta, nas regiões da costa norte-africana, ocupadas pelos vândalos, até a época da expansão árabe, no século V II. Mas, no interior do antigo império romano, os próprios germanos não escaparam à assimilação estrangeira: adotaram, rapidamente, a língua latina da massa popular.

A visão mais precisa dessa língua dos romanos foi-nos transmitida, porém, através de uma catástrofe da natureza, que sucedeu em 24 de agosto do ano de 79 d. C- Nesse dia, a cidade romana de Pompéia foi soterrada por uma camada de lava e cinzas, de seis metros de altura, devido a uma erupção do Vesúvio. Essa camada conservou a cidade por quase 2000 anos. Por ocasião das escavações desta cidade antiga, realizadas no fim do século passado, foram encontradas várias inscrições e frases murais, muitas delas de conteúdo maldoso e obsceno. Tais frases murais maldosas são, até
hoje, bastante comuns.
Com que freqüência encontramos, em nossas cidades, frases escritas por mão infantil, em uma ou outra parede, como “João ê bobo” ou similares. Uma dessas frases murais, que nos mostra, de imediato, as diferenças consideráveis para com o latim clássico, é a seguinte:
NYCHERATE, VANA SUCCULA, QUE AMAS FELICIONE ET AT PORTA DEDUCES, ILLUC TANTU IN MENTE ABETO
“Nycherate, você, porcalhona inútil, que ama Felício e o leva diante do portal, você deveria refletir bem sobre isto”
Notamos o nome Felicione, ao invés de Felicionem, e porta, ao invés de portam. A queda do m é uma mudança fonética das mais antigas, que remonta ao século II a. C.
*Trecho retirado de “O LATIM VULGAR ESBOÇO HISTÓRICO E LINGÜÍSTICO”, de Theodor Fritsch (p. 126)
Situação posterior ao Fim do Império
“De certo modo, a divisão política do Império Romano sob o imperador Constantino consagrou uma divisão que já estava completamente consolidadda do ponto de vista cultural e lingüístico, ao separar um Estado de fala e cultura latinas e um Estado de fala e Cultura gregas”.
(Ilari, 1992:48)
Razões da manutenção do Latim na porção centro-ocidental do antigo império:
1) O Latim como Língua de Cultura
2) O Cristianismo como fator de união cultural
3) Os “Estados Bárbaros”: “Reinos Romanos”
“(…) o Império sobreviveu como um ideal de ordem política durante toda a Idade Média; a unidade lingüística e cultural dos territórios romanizados não impressionou menos os antigos, romanos ou bárbaros. Para denominar esta unidade lingüística e cultural, emprega-se o termo Romania [séc. V]”.
“Romania deriva de romanus, e este foi o termo a que naturalmente recorreram os povos latinizados, para distinguir-se das culturas barbáricas circunstantes: assim, os habitantes da Dácia, isolados entre os povos eslavos, autodenominaram-se romîni, e os réticos se autodenominaram romauntsch, para distinguir-se dos povos germânicos que os haviam empurrado contra a vertente norte dos Alpes suíços”.
“Sobre romanus formou-se o advérbio romanica, ‘à maneira romana’, ‘segundo o costume romano’, e a expressão romanice loqui se fixou para indicar as falas vulgares de origem latina, em oposição a barbarice loqui, que indicava as línguas não românicas dos bárbaros, e a latine loqui, que se aplicava ao latim culto da escola. Do advérbio romanice, derivou o substantivo romance, que na origem se aplicava a qualquer composição escrita em uma das línguas vulgares”.
(Ilari, 1992:50)
LEIA MAIS EM:
LEAO, Duarte Nunes de, fl. 1530-1608. Origem da lingoa portuguesa / per Duarte Nunez de Lião, Desembargador da Casa da Supplicação, natural da inclyta cidade de Evora : dirigida a el Rei Dom Philippe o II. de Portugal nosso Senhor. – Em Lisboa : Impresso por Pedro Crasbeeck, 1606. – [6], 150 p. ; 4º (18 cm)
Fatores Importantes da “des-latinização” do restante do Império
Razões da não-manutenção do Latim em porções do antigo Império (cf. Ilari, 1992):
1). Romanização Superficial (Germânia, Britânia, Caledônia)
2) Superioridade Cultural dos Vencidos (Grécia, Mediterrâneo Oriental)
3) Superposição Maciça de Populações não-Românicas (África, Península Ibérica)

REFERÊNCIAS:
1. FRITSCH, T. Latim Vulgar – esboço histórico e lingüístico. In: Língua e Literatura, São Paulo, ano II, n. 2, p. 123-131, 1973.
2. ILARI, Rodolfo. Lingüística Românica. São Paulo: Ática, 1992. Capítulos 6, 7 , 8 e 9.
Trechos retirados do site <Aula de Latim Vulgar (usp.br)>