Duas viagens ao Brasil por Hans Staden (Cap. III, IV, V)

Capítulo 3: Como os selvagens de Pernambuco se rebelaram e quiseram destruir um estabelecimento dos portugueses

Por culpa dos portugueses, eclodiu um tumulto dos selvagens numa região, a dos Caetés, que até então tinha sido tranquila, e o capitão do país nos implorou pela graça de Deus que acorrêssemos em ajuda à localidade de Igaraçu, a cinco milhas de Olinda e que os selvagens estavam prestes a tomar. Os habitantes de Olinda, frente à qual estávamos ancorados, não podiam socorrer a outra localidade, pois temiam eles mesmos sofrer um ataque dos selvagens.

Partimos, quarenta homens de nosso navio, em ajuda aos colonos da localidade de Igaraçu, e adentramos num pequeno navio por um braço de mar que se estendia duas milhas para dentro da terra em cuja margem a localidade estava situada. O número dos defensores devia estar em torno de noventa cristãos aptos para a luta. A eles vinham somar-se trinta negros e escravos brasileiros, isto é, selvagens que pertenciam aos colonos. Os selvagens que nos sitiavam foram estimados em oito mil. Nossa única proteção na localidade sitiada consistia numa cerca de varapaus.

Capítulo 4: Como se apresentava a fortificação dos selvagens e como nos deram combate


A localidade onde estávamos sitiados era cercada de mata. Nessa mata os selvagens construíram duas fortificações com espessas toras de madeira. Recolhiam-se para lá à noite e esperavam por eventuais investidas nossas. Durante o dia ficavam em buracos na terra que cavaram em torno do povoado e avançavam quando buscavam escaramuças. Ao atirarmos neles, jogavam-se ao chão de modo a escapar das balas. Mantinham-nos de tal forma sitiados, que do nosso lado ninguém podia entrar ou sair. Chegavam perto do povoado, atiravam numerosas flechas para o alto, que deviam nos atingir ao cair e às quais tinham amarrado algodão embebido de cera. Com essas flechas incendiárias queriam colocar fogo nos telhados das casas. Ameaçavam também nos comer caso nos pegassem.


Tínhamos pouca comida, e esse pouco foi logo consumido. Naquelas terras é comum buscar-se a cada dia ou a cada dois dias raízes frescas de mandioca e com elas fazer farinha ou bolo. Mas não podíamos ir até as plantações. Ao constatarmos que ficaríamos sem mantimentos, saímos com dois barcos na direção do povoado de Itamaracá para abastecer-nos. Mas os selvagens colocaram grandes árvores sobre a água em nosso caminho e montaram guarda nas duas margens, na esperança de impedir nosso
avanço.

Conseguimos remover os obstáculos à força, mas veio a maré baixa e ficamos no seco. Nos barcos os selvagens não podiam nos atingir. Por isso trouxeram madeira seca de suas fortificações e jogaram-na entre a margem e os barcos. Queriam incendiá-la e jogar no fogo a pimenta que por lá crescia. A fumaça devia fazer com que tivéssemos de abandonar as embarcações. Não lograram realizar seu plano, pois no entretempo voltou a maré alta.


Conseguimos, então, prosseguir até Itamaracá, e os moradores nos abasteceram de mantimentos. Na volta fecharam-nos o caminho no mesmo lugar. Como antes, jogaram árvores na água e permaneceram nas margens. Duas árvores estavam cortadas na parte inferior do tronco e suas copas estavam marradas com plantas trepadeiras chamadas cipós.

Elas crescem como lúpulo, mas são mais grossas. Os selvagens seguravam a outra extremidade dos cipós em suas fortificações e pretendiam esticá-los à nossa passagem, de modo que as árvores quebrassem e caíssem sobre nossas embarcações. Avançamos assim mesmo e passamos, pois a primeira árvore caiu sobre o entrincheiramento deles e a outra caiu na água logo depois de
nosso naviozinho passar.

Em vez de continuarmos ao encontro dos obstáculos que sobraram de nossa ida, pedimos aos camaradas que ficaram no povoamento sitiado para que viessem em nosso socorro. Mas, quando começamos a chamá-los, os selvagens passaram a gritar para que nossos camaradas não pudessem nos ouvir. Tampouco podiam nos ver, pois havia um bosque separando-nos. Mas estávamos tão próximos que poderiam ter-nos ouvido se os selvagens não tivessem berrado para encobrir nossos apelos.

Por fim, trouxemos os mantimentos até a colônia, e, ao ver que não conseguiam fazer nada, os selvagens fizeram as pazes e se retiraram. O sítio demorou quase um mês. Os selvagens tiveram algumas baixas, mas nós, cristãos, não sofremos nenhuma. Para nós, havia ficado claro que os selvagens tinham desistido de seu intuito. Por isso nos retiramos para nosso navio maior, que tinha ficado em Olinda, onde carregamos água e farinha de mandioca para nosso próprio uso. O comandante da localidade de Olinda nos agradeceu.

Capítulo 5: Como partimos de Pernambuco, atingimos a terra dos Potiguaras na Paraíba e
encontramos um navio francês, com o qual travamos batalha


Navegamos quarenta milhas até um porto de nome Paraíba, onde carregamos pau-brasil e onde queríamos nos abastecer de mais mantimentos junto aos selvagens. Ao chegarmos, encontramos um navio da França que estava carregando pau-brasil.


Atacamo-lo e esperávamos tomá-lo; mas eles danificaram nosso grande mastro com um tiro e escaparam. Entre nossa tripulação houve alguns mortos e alguns feridos. Após o que, decidimos retornar a Portugal, pois devido a ventos adversos não podíamos retornar ao porto onde queríamos carregar os mantimentos. Assim navegamos sob ventos desfavoráveis e com mantimentos insuficientes em direção a Portugal e sofremos muita fome.


Alguns comeram as peles de cabra que tínhamos a bordo. Cada homem recebia diariamente uma tigela de água e um pouco de farinha de mandioca brasileira. Depois de uma viagem de 108 dias chegamos às ilhas dos Açores, que pertenciam ao Rei de Portugal; lá jogamos âncora, para descansar e pescar. Ao avistarmos um navio no mar, nos dirigimos a ele. Descobrimos que era um navio pirata, que tentou se defender. Mas levamos vantagem e o tomamos, aproveitando para nos apoderar de muito vinho e pão, de que nos regalamos. A tripulação escapou num barco e alcançou uma das ilhas. A seguir deparamo-nos com cinco navios do Rei de Portugal, que esperavam por navios da Índia ao largo dos Açores, de forma a escoltá-los até Portugal.

Juntamo-nos a eles e acompanhamos um cargueiro apenas chegado das Índias até a ilha Terceira, onde fizemos novamente uma pausa. Numerosos navios tinham-se aglomerado frente a essa ilha, navios que
tinham chegado de todas as novas terras e dos quais alguns deviam prosseguir para a Espanha, outros para Portugal. Quando zarpamos juntos da ilha Terceira formávamos um grupo de quase cem navios. Chegamos a Lisboa aproximadamente em 8 de outubro de 1549, depois de uma viagem de dezesseis meses.


Lá fiquei repousando por um longo período e tomei a decisão de viajar com os espanhóis para suas novas dependências. Para tanto deixei Lisboa a bordo de um navio inglês e fui para uma cidade chamada Puerto de Santa Maria, em Castela, onde os ingleses queriam carregar vinho. Prossegui até a cidade de Sevilha e encontrei três navios preparados para uma viagem ao Rio da Prata, uma terra nas Américas.

Essa região, o rico Peru, que tinha sido descoberto alguns anos antes, junto com o Brasil, formavam um só continente. Para continuar a ocupar as terras do Rio da Prata, um certo número de navios fora enviado para lá há alguns anos, dos quais um tinha retornado. Pediram por mais ajuda e relataram que aquelas terras deviam ser muito ricas em ouro. O comandante dos três navios, Don Diego de Sanabria, deveria ser o lugar-tenente do Rei naquelas terras.


Instalei-me a bordo de um dos navios, que estavam muito bem equipados, e logo navegamos de Sevilha até São Lucar, na embocadura do Guadalquivir, rio onde está situada Sevilha. Ficamos lá à espera de ventos favoráveis.

Duas viagens ao Brasil por Hans Staden: Capítulos I e II

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