Odisseia: Livro VII

Ora o sofrido herói; marcha a carroça,
Pára Nausica ao pórtico soberbo:
Os irmãos seus deiformes, que a rodeiam,
Os mus disjungem, dentro a carga levam.
Ela à câmara sobe: o fogo acende
E a ceia lhe concerta Eurimedusa,
Do Epiro transportada em naus remeiras,
Pelo povo escolhida em recompensa
Para o potente Alcino, dos Feaces
Como um deus adorado; a qual na régia
Nutriz foi da donzela, e é camareira.
Ergue-se Ulisses, e a propícia déia
O embuça em névoa grossa, que insultá-lo
E ofender ninguém possa, nem detê-lo
Ou quem seja inquirir; mas, da risonha
Cidade ao começar, vem Palas como
Rapariga de cântaro à cabeça,
E o Laércio a interroga: “Filha, queres
Conduzir-me de Alcino aos reais paços?
Estrangeiro e infeliz, de longe arribo;
Nem do lugar um morador conheço.”
“Sim, respeitável hóspede, responde;
Meu bom pai fica perto. Abro o caminho;
Tu cala-te, que a turba hostil e acerba
Não sofre nem festeja os forasteiros.
Tal gente, ousada nas talhantes quilhas,
Os mares trana, pois lhas deu Satúrnio
Velozes qual a pluma e o pensamento.”
Ela avança, ele a segue. À chusma oculto
Marítima perpassa, que Minerva
Lhe difundia divinal caligem:
Os portos vai mirando e as alterosas
Naus e o foro e as muralhas estupendas
Com valos guarnecidas. Mas, vizinhos
Ao paço, adverte a guia olhicerúlea:
“Dentro, hóspede e senhor, de Jove alunos
À mesa encontrarás. Anda e não temas;
O audaz e franco, donde quer que chegue,

O namoro de Paris e Elena. Tela por Jacques-Louis David (1748-1825)

Vence embaraços. A rainha busques,
A quem de Areta cabe o grato nome,
E é da real prosápia do marido.
Eurimédon feríssimos gigantes
Altivo dominava, e o duro povo
Com ele pereceu; de Peribéia,
Menor filha e a mais guapa, houve Netuno
O bravo Nausítoo, aqui reinante,
O qual foi pai de Rexenor e Alcino;
A Rexenor matando o Arcitenente,
Ele deixou, casado era de fresco,
Não masculina prole, única Areta;
Com Areta esposou-se o tio Alcino.
Mais honrada não há matrona alguma
Dos caros filhos, do consorte mesmo;
Quando passeia, divindade a julgam
E de seus lábios as palavras colhem;
Boa e inspirada, os cidadãos congraça.
Rever esperes, se te for benigna,
Os amigos e a pátria e a celsa casa.”
Pelo ponto infrugífero, eis Minerva
Da Esquéria amena parte, e se dirige
A Maratona e Atenas de amplas ruas,
De Erecteu sobe o alcáçar. Ao de Alcino,
Sem que o límen transponha, tem-se Ulisses
A cogitar. Magnífico palácio
Como o Sol fulge e a Lua: éreas paredes
Firmam-se em torno, da soleira adentro,
Com seus frisos de esmalte, áureas as portas,
Argênteos os portais ao brônzeo ingresso,
Argênteas vergas, a cornija de ouro;
De ouro e de prata uns cães, de lado a lado,
Com alma e coração, Vulcânio invento,
São de Alcino os custódios vigilantes,
Imortais e à velhice não sujeitos;
Para o interior há tronos desde a entrada,
Com finos véus de mãos femíneas obra,
Onde em redor assentam-se os magnatas
A comer e beber, durante o ano;
Com primor fabricados, junto às aras
Mancebo de ouro estão, de acesos fachos
A alumiar de noite os conviventes.
Servem cinqüenta moças: quais, em pedra
Flavo trigo a moer; quais, aos teares;

Quais, a virar num rodopio os fusos,
Como do álamo as folhas buliçosas.
Untado e bem tecido o linho estila:
Tanto os Feaces navegando excelem,
Quanto as mulheres têm, mercê de Palas,
Para a teia e o lavor engenho e arte.
Não distante, há vergel de quatro jeiras,
Onde florentes árvores viçosas,
De inverno e de verão, perene brotam;
Zéfiro meigo lhes sazona os frutos,
Um pula, outro arregoa, outro envelhece.
Nova sucede à pêra já madura;
À escachada romã sucede nova;
Esta oliva é de vez, rebenta aquela;
Junto à maçã vermelha a verde cresce;
Figo após figo, mela, uva após uva.
Medra abundante vinha: em área cachos
Estão secando ao Sol, quais se vindimam,
Quais pisam-se em lagar; doces roxeiam,
Ou no desflorescer acerbos travam.
O arruado pomar fenece em horta,
De verduras mimosa em toda quadra.
Pelo inteiro jardim corre uma fonte;
Jorra ao pátio a maior ante o palácio,
Donde bebe a cidade. Eis quanto os numes
Ao nobre Alcino em casa prodigaram.
Ulisses mira e pasma, e na caligem
Paládia envolta, a limiar transpondo,
Acha-os libando a Hermes negocioso,
Brinde final dos que do leito curam;
E mal, vizinho ao rei, da augusta esposa
Às plantas cai, a nuvem se dissipa.
Todos o encaram mudos, e ele exclama:
“Filha de Rexenor, divina Areta,
Mísero eu te suplico e a teu marido
E aos mais senhores: oxalá que extensa
Vida obtenhais e transmitir à prole
Bens e fortunas que vos der o povo!
Breve porém mandai-me à pátria minha;
Fora dos meus padeço há largos anos.”
Nisto, ao fogão sentou-se no cinzeiro.
O silêncio reinava, até rompê-lo
Equeneu venerando, o mais idoso
Dos Feaces heróis, mais eloqüente,

Mais douto no passado, e orou sisudo:
“O hóspede, Alcino, ali jazer na cinza
É pouco honesto; o aceno os mais te aguardam
Em sede claviargêntea, eia, o coloques;
Vinho manda infundir, para ao Fulmíneo,
Que assiste a honrados hóspedes, libarmos;
Já, ministrei-lhe ceia, a despenseira.”
E o rei pega do sábio, em trono o assenta
Resplendido, que próximo ocupava
O forte e amado filho seu Laodamas.
Serva em bacia argêntea às mãos verte água
De áureo gomil, desdobra e espana a mesa;
Pão traz modesta ecônoma e iguarias
Novas, que às encetadas acrescenta.
Come Ulisses e bebe, e o rei com força:
“Mistura, tu Pontono, e da cratera
O vinho distribui, para ao Fulmíneo,
Que assiste a honrados hóspedes, libarmos.”
O arauto o brando vinho que mistura.
Em copos vaza e o distribui aos chefes.
Depois Alcino: “Egrégios conselheiros,
Ide saciados repousar, vos digo.
Os antigos do povo amanhã venham;
Em festejo hospital ofereçamos
Completo sacrifício às divindades;
Em seguida curemos de que alegre
Ele, por mais remota, à pátria aborde,
Sem moléstia nem danos; acautelemos
Qualquer mal no caminho. Já na terra,
Sofra as penas que as Parcas lhe fiaram
Desde o materno ventre. E a ser do Olimpo
Habitador, mistério aqui se encobre:
Deuses muito há que a nós se manifestam;
Conosco, nas solenes hecatombes,
Demoram-se ao banquete; e se um Feace
Os depara viandante, não se escondem,
Pois neles entrocamos, como as tribos
De Ciclopes cruéis, gigantes rudes.”
“Alcino, o herói tornou, perde essa idéia:
Aos celícolas tu não me confrontes
Em índole e presença; humano e frágil,
Ao mais triste mortal sou comparável,
Nem te posso explanar quanto infortúnio
Tem sobre mim os deuses carregado.

Mas, da mágoa apesar, deixa que eu ceie;
O estômago importuno se aguilhoa,
No meio da aflição me pica e lembra
O comer e o beber, dá trégua às penas.
N’alva expedi-me: ao ver, pós tantas lidas,
Minha terra e família e doces lares,
Acabe-se esta luz ali comigo.”
Aplaudem-no os Feaces, confiando
Que o disserto orador o intento logre,
E trás farto libar foram-se ao leito.
O herói fica-se e Areta e o rei divino,
E as servas a baixela entanto arrumam.
Logo Areta, que as obras reconhece
Dela e da gente sua: “A interrogar-te
Primeira, hóspede, sou. Quem és e donde?
Como houveste essa túnica e esse manto?
Não dizes tu que náufrago abordaste?”
“Narrar-te já, responde, quantos males,
Senhora, o Céu vibrou-me, é mui difícil;
Mas ao que me perguntas satisfaço.
De humanos e mortais mora apartada,
Na Ogígia ilha do alto mar, Calipso,
De Atlante gérmen, de encrespada coma,
Ardilosa e tremenda; ali mau gênio
Lançou-me só, desfeito havendo Jove
A raio a embarcação no escuro abismo,
Onde os meus nautas soçobraram todos.
Por nove dias, aferrado à quilha,
De vaga em vaga, ao décimo de noite
A praia toco. A ninfa carinhosa
Me tratou, me nutriu, velhice e morte
Quis tolher-me, e abalar-me nunca pôde.
Firme reguei de choro as dadas roupas
Incorruptíveis; mas, de Jove ao mando
Ou volúvel, no curso do ano oitavo
A partir me exortou numa jangada,
Pão forneceu-me e vinho e odoras vestes,
Favônias a invocar-me auras suaves.
Aos oito sóis de undívaga derrota,
Vossa alta umbrosa terra apareceu-me,
E no peito exultei. Mas ai! Netuno,
Insensível ao pranto, em furor sempre,
Com vastas brenhas de surdir me impede,
E a barca um vagalhão me desconjunta.

As ondas meço a braço, té que à ilha
Sanhudas nuns penedos me remessam
Inacessíveis. Novamente nado,
A foz emboco enfim de um rio ameno,
Tuto e limpo de escolhos e abrigado;
Em salvo, ânimo cobro. A tarde assoma,
Deixo o rio Dial; em selva opaca,
Inda que atribulado, acamo folhas,
E um deus noite e manhã me embebe em sono.
Ao declinar do Sol, acordo e avisto
A filha tua às imortais parelha,
N’alva praia, entre as fâmulas brincando;
Suplico, admiro o tento que, ó rainha,
Esperar não puderas dos seus anos
De imprudência e loucura: fez banhar-me,
De vestidos proveu-me e de alimento.
Nesta angústia, senhora, eis a verdade.”
“Hóspede, acode Alcino, a filha minha
Ao decoro faltou, que ao nosso alvergue
De antemão suplicada, lhe cumpria
Na comitiva sua conduzir-te.”
O manhoso atalhou: “Tu não censures
A inocente princesa; ela mandou-me
Acompanhar as servas, e eu neguei-me.
Temi quiçá, que ao vê-lo te irritasses:
À suspeita é propensa a espécie humana.”
“Temerário não sou, replica Alcino,
Ou pronto em me irritar; o honesto e justo,
Hóspede, em mim domina. Oh! queira o Padre,
Minerva e Apolo, tal qual és, de acordo
Com meu sentir, que genro meu te fiques!
Dôo-te casa e bens. Mas por violência
Ninguém te reterá: condena-o Jove.
Dorme em sossego, disporei seguro
Teu regresso amanhã: durante as calmas
Os nautas remarão, se além de Eubéia
Mesma o desejes, ilha a mais remota,
Segundo os que de Télus navegaram
Ao filho Tício o flavo Radamanto;
Porém num dia aqui se recolheram.
Conhecerás que chusma e naus possuo
Para à voga arrancada o mar fenderem.”
Folga e depreca Ulisses: “Padre excelso!
Cumpra Alcino a promessa; a glória sua

Encha a terra fecunda, e eu veja a minha.”
Inda assim praticavam, quando Areta
Albinitente ao pórtico uma cama
Estender manda, com purpúreas colchas,
Com tapetes, e espessos cobertores;
Vão de facho na mão fazê-la as servas,
E o paciente herói depois avisam:
“Hóspede, vem dormir, que é pronta a cama.”
Ulisses com prazer no recortado
Catre ao sonoro pórtico se estira.
Foi dentro Alcino se gozar do sono,
Com sua esposa o leito compartindo.

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